Confraternização

(Na geladeira)

quinta-feira, janeiro 31, 2008

Sereia do mar levou

POEMA À MORTE EM POSTA

Quando ali vi as ondas do mar
– onde eu vira a mim mesmo refeito –
Entregando-se a mim em harmonia

Pensei planejar o outro dia.
Pensei num plano perfeito.

Mas o mar, indeciso, revirou.
A boa energia se dissipou
E a rima, bonita, se afogou.


Algoz

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Energias

Há quem acredite em energias. Na energia de um lugar, na energia de uma pessoa, na energia de um intento. E por que duvidar delas? Nem das pessoas, nem das energias em que acreditam. Sim, há pessoas que se deixam quedar em desespero e apatia, por motivos quaisquer – que sempre se justificam dentro de si mesmas –, e acabam por atrair energias negativas. Será? E não é essa suposta [e clinicamente chamada] depressão o curso de um rio inquietamente tácito que, ignorando – com ou sem consciência disso – fauna e flora e tentativas externas de alteração de seu curso, se faz – eventualmente e a seu próprio tempo – ao mar, onde se deixa misturar, em harmonia, com as ondas do caos-vida? Assim como uma pensada boa energia pode se transformar em excesso de confiança, e depois em soberba, e depois em afogamento. E porque a energia não é senão uma vontade humana de energia, ela é boa ou ruim e grande ou pequena e bela ou feia de acordo com um estalar de neurônios. O mesmo calor que permite a vida, em excesso a tira. E o excesso de frio só conserva um corpo depois que o mata. E as mesmas partículas de matéria que, descobertas, libertaram muitos sonhos das garras de seus deuses inquisidores, quando foram aceleradas, deu no que deus qualquer faz em seu autoritário momento de ira: energia.


Algoz

terça-feira, janeiro 29, 2008

A primeira viagem

E assim foi: eu já tinha meus quase trinta anos. A vida corria tanto que tardou a me ocorrer: era minha primeira vez. Foi quando a velocidade tocou o limite da lei: apertei o botão que fez tocar aquele Metallica áureo – que poucas porém boas vezes dividi com aquele amigo mais caro pelas estradas da vida –; o vento em meu braço abriu em meu rosto um sorriso descuidado de si mesmo; vi toda a paisagem passando pelos meus olhos, do lado esquerdo e... do lado direito: ninguém! Eu estava na estrada, no limite de velocidade – e poderia dizer que era mais um limite de minha própria vida –, e sozinho ao volante. Era minha primeira vez. E se ao meu lado não havia pra quem sorrir ou com quem cantar, era mesmo um momento muito meu. E aquela solidão, acompanhada das memórias de outras viagens e das pessoas que se tinham quedado pelas estradas por que passei, aquela solidão era o sorriso desconhecedor do que cada curva trazia depois de si. Eu sabia, apenas, que havia muitos radares no caminho. E que depois da última curva haveria uma amiga, querida o suficiente pra me botar na estrada sozinho pela primeira vez na vida, e querida o bastante pra me fazer visitá-la depois de quase dois anos sem contato algum.
Quando a serra começa, não há radares. Então se respeita o limite do bom senso, que deve ser algo entre os dois extremos: o dos chatos caminhões, que descem a cem metros por minuto; e o das graciosas marias-sem-vergonha, que sobem mil vezes mais rápido. Há naquela estrada uma área pra que parem motoristas quaisquer por quaisquer motivos. Há talvez alguns brinquedos, desses de parquinhos de diversão, mas coisa rústica. E a vista do vale que se forma feito fiorde nas entranhas da serra, e alguns dos fios de água que descem pela encosta pra formar aquele rio abismalmente distante que parece o raquítico fiorde que minha imaginação fez pensar. Ali eu parei. Porque estava sozinho, e fazia meu próprio tempo. Porque precisava mesmo ligar pra minha amiga pedindo seu endereço exato e alguma explicação de como lá chegar. Porque nem oito horas ainda o dia tinha, e isso me fazia tão necessitado de esticar as pernas quanto disposto a me frear a aventura pra um momento de apreciação despreocupada. E porque – ali, então, parado, me lembrei – estive naquele mesmo lugar meses antes, e tinha com meus amigos uma foto em que aparecíamos, os três, olhando o vale que era apenas uma grande névoa branca a cobri-lo. E como o dia se ia abrindo limpo, tentei tirar uma foto do mesmo ângulo daquela outra, eu sozinho pisando o mesmo pedaço de chão em que antes me acompanhavam aquelas pessoas queridas e então já tão distantes nessa terra gigante, mas a quem meus sentimentos traziam perto, abraçadas pelo abraço maior que é aquele que nem precisamos dar. E não sentia tristeza nisso: meu sorriso saía incautamente honesto, tanto com o momento quanto com a memória. E certamente, pra esses que eu levava comigo, essa imagem de mim mesmo era mais bonita e mais condizente com o justo por que eu passava. Voltei ao carro, segui caminho.
Encontrei com alguma facilidade a simples e boa casa. O abraço bom preservado, tomamos café, conversamos amenidades. Ela logo me perguntou se eu estava cansado, ao que resolveu me levar a uma praia sem dificuldades de acesso. Então ali estávamos, sentados, a três ou quatro metros daquela água doce que logo adiante se encontraria com as ondas do mar. E as amenidades se foram transmutando em assuntos, em pensamentos, em trocas de experiências. Sua avó havia falecido no ano anterior, assim como o meu avô. Ela era assim e assado, ele falava isso e aquilo, ela tinha tantos anos, ele também. No final das contas, ficou pra mim a idéia de que esses dois velhos – ranzinzas e ao mesmo tempo moleques – teriam sido um bom par nessa vida: de amigos que se ofendessem com sangue nos olhos, ou de vizinhos que trocassem farpas com aquela admiração mútua que nem o último leito faria admitir.
Então voltamos, almoçamos. Cerveja vai, cerveja vem, a tarde foi. E depois, noite alta já, nós dois na parte aberta da edícula da casa, o quintal ali, céu nublado, vento frio, e a imagem do carinho que fica em mim guardada como tesouro sem chave nem cadeado: uma latinha e dois copos; um silêncio e duas pessoas; aquele momento e seus múltiplos futuros, que esse exato carinho permite – apesar de todo o resto das pessoas do mundo e das coisas da vida e das idéias do tempo – encontrarem-se em tranqüilidade, ainda que já velhos, mas como dois velhos que viveram e morreram quase tudo, e que sabem o carinho mútuo como o último remédio.


Algoz

sexta-feira, janeiro 25, 2008

O caminho do caminho

POEMA A QUEM MORE EM MIM

Não caminho com a cabeça erguida
Nem baixa, ou de soslaio

Caminho, assim, como quem vive
A vida insiste, sigo nela

Tento, quanto me lembro,
Desviar-me dela, quanto posso.
(E tenho – satisfeito – lembrado bastante)

De algumas coisas perdi controle
(Como fosse, perpetuamente, mantê-lo.
E terei, jamais, o tido?)

Deixo um emprego maquinal, chato.
E vou empregar minhas vontades
Na cozinha, na música, na arte.

De algumas pessoas me perdi
(Tenho desejo de encontrá-las.
Mas meu desejo a mim me basta,
Quem quiser me encontrar, sabe como.)

Então caminho em direção a mim mesmo.
Como ontem, a si mesma, foi a moça
que punha sossego em minha cama.

Caminho em direção a mim mesmo
Onde possa acompanhar de mais perto
o tempo a fazer seus trabalhos
[na casa tranqüila que eu serei.

E paciente assitirei,
das cadeiras de praia
[do quintal.



Algoz

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Covardias

Qual covardia será maior: a que se impõe ou a que se aceita? Se mesmo um deus uno é diferente pra cada pessoa e em cada circunstância, que forças regem os motes da vida? Se o inferno de cada um é uma imagem ou um som ou um cheiro ou uma presença ou uma ausência diferente do inferno de outro qualquer e mutável dentro de si mesmo... onde chegam todas as filosofias humanas, das supostamente elevadas às mais chãs? Se o carinho que não se ocupa de oprimir, e o bem-querer que se deixa anular em nome de ser apenas bem-querer, e os olhos que querem apenas acompanhar – apesar de isso em si ser de alguma forma vaidade –, e as palavras que querem apenas ser carinho e bem-querer e companhia, e tudo mais que seja uma carência tão consciente de si mesma que seu próprio peso – visto como negativo – seja um sorriso ciente de sua própria finitude... se tudo isso enfim, somado a tudo que se possa chamar – com honestidade – de belo, não basta pra que um amor sobreviva... o que é o amor e de que vale? (O que é a honestidade, dentro desse raciocínio?) O amor, enquanto realização prática de todas as potencialidades de que se pensa ser feito necessário, não há. E se há, é meramente como aplicação endógena de tudo isso. E qualquer retorno que se alcance dos intentos dessas potencialidades há de ser satisfatório acaso. E em havendo tal acaso, ele próprio se transformará em trabalho constante de autopreservação – dentro da irremediável mutação que ele próprio se infligirá. Enquanto cada deus segue em sua própria paz; os homens fazendo guerras pela imposição de suas próprias opiniões-verdades acerca de tal imunidade, espancando suas ora valentes ora silentes mulheres; as grandes filosofias impondo suas versões do que sejam as grandes covardias em oposição nítida e absoluta das austeridades que se pode/deve praticar. E cada homem e cada mulher, perdidos no grande oceano interno de que não são senão marionetes, segue caminhando a vida – entre alegrias e descontentamentos – de cabeça pensa e olhos dispersos, pensando – cada qual com suas próprias idéias e palavras – em como não passam de ser aquilo tudo que, ao longo da vida, foram perdendo. Alguns optarão por não olhar pra trás, e terão talvez a cabeça quase ereta, e um olhar direcionado qualquer a qualquer coisa e/ou pessoa. Mas quando os olhos se fecham pra que o esqueleto descanse e os músculos se desenrijeçam, o escuro da mente – pouco diferente de cada um pra outro – trás tudo de volta. E só não sonha com ratos imundos quem recebe o amor de quem se ama. Além de todas as outras coisas. O oceano é infinito, e os navios cargueiros não cessam. Mas se rarefazem nas costas tranqüilas em que se pesca por comer, e se banha por se sintonizar, e se observa por sentir, e se respira por viver; e em que se sente que a companhia com quem se pesca, com quem se banha, com quem se observa, com quem se respira... está lá por vontade, e tem seus próprios fantasmas e respeita a todos, aos seus e aos de quem mais os tiver. E sente que seus próprios fantasmas são respeitados, e não se assusta com tal respeito.


Algoz

terça-feira, janeiro 22, 2008

Rememoração de um aniversário

Creio que o resto da vida acontecia sem grandes desvios. Pessoas acordavam, pessoas se deitavam. Era uma quinta-feira, e era feriado. Senhoras muito idosas compravam seus legumes e suas verduras pelas ruas da cidade e garotos muito jovens pediam a elas – e a tantas outras pessoas, em tantos outros lugares – as esmolas que o mundo se acostumou a manusear. Certamente um sinal de escola tocava naquele momento. Mas não nessa cidade, que comemorava mais um seu aniversário – haveria algo pra se comemorar? –, e pensando bem era mês de férias. Mas o sinal, que tocava naquela escolinha do interior – ainda que apenas do interior de minha cabeça –, era um coração saltando pela boca do garoto tímido que durante a aula tinha finalmente enfrentado o próprio estômago e enviado ao objeto de seu humilde e honesto desejo – aquela menina de cabelos encaracoladamente pretos – um bilhetinho com que pedia a ela um encontro a sós durante o recreio. E o sinal era o recreio. E o recreio traria a resposta do bilhetinho, e a resposta do bilhetinho tinha que ser positiva, pra trazer outro pedido e outra resposta positiva e... tudo culminaria num beijo. E seria o primeiro beijo. E enquanto quisessem, nenhum dos dois esqueceria aquela história – ou parte dela que fosse. Assim corria a vida.
Era feriado, e era quinta-feira. Eu estava em casa, todo o meu amor calmamente borbulhando à espera de um chamado qualquer pra se fazer abraço, beijo, olhar, carícias e indizíveis outras tantas lindas coisas. Ela estava no trabalho, tinha trocado a sexta pela quinta, ou vice-versa. Houve o chamado. Eu não podia abrir as portas das coisas do mundo, não podia encostar muito nela, beijá-la nem pensar. Mas o destino, que às vezes favorece, me dava aquela hora junto daquela mulher, e os poucos passos que demos lado a lado faziam os poros do meu corpo se abrirem. E aqueles minutos intocáveis, sagrados, que passamos frente a frente na mesa daquele charmoso restaurante, trocando apenas nossos olhares e sorrisos carregados de tudo que nenhuma palavra pode macular... ah!, aqueles minutos... em que a vida acontecia sem grandes desvios, mas dentro de mim o Universo se expandia com beleza caoticamente intangível, e estar sentado naquela mesa não significava nada senão por meus olhos estarem a se perder por essa expansão cósmica através dos olhos amendoados daquela mulher.
Se eu a tivesse raptado naquele dia, feito o herói romântico da cabeça daquele menino do sinal do intervalo do pedido de namoro e de beijo... Não, eu não precisaria tê-la raptado. Aquele almoço foi talvez o maior pacto de sangue de nossas vidas.
Então a levei de volta... de volta a seu trabalho, a sua vida... e assim – como a sexta-feira traria em si mesma o final de semana –, eu me despedia dela por três longos dias, em que voltava exclusivamente a todas as pessoas que faziam parte de sua vida e que eu nunca conheci – à exceção de seu irmão e de seu noivo.
O recreio foi curto, as pessoas eram muitas, os bedéis obseravavam. Uma palavra talvez mal colocada, o medo certamente sempre presente, e o sinal novamente tocou. Agora o coração está apertado, chega mesmo a doer, fisicamente. Mas, aula vai, aula vem, estão perto um do outro, trocam sorrisos vez ou outra, deixam as mãos se encostarem, furtivamente trocam beijos e outros bilhetes. E na inocente crença do pobre-diabo, pensa que sua honesta ternura e seu gritante bem-querer e todo o resto que sente – e sabendo que, apesar de falar pelos cotovelos, as palavras não dão conta do que seu coraçãozinho pequeno sente em quase-explosão –, tudo enfim de que é feito e que tem pra oferecer... pensa que tudo aquilo é bastante e suficiente pra conquistar as graças desse seu intento.
Mas na saída vem um menino, que é de outra escola e um ano mais velho, e volta caminhando com ela pra casa. E o boleiro que há no menino volta pra quadra e joga com mais vontade, com mais aplicação, com mais habilidade, com mais força. E seus pés fazem amigos, e seus amigos trazem novos amores, e os novos amores novas desilusões, e tudo de novo e de novo e de novo. E a vida continua, sem grandes desvios, porque não nos desviamos de nossas pequenas covardias, ora uns, ora outros. E o primeiro beijo fica engavetado na memória, junto com o primeiro gol feito depois dele.



Algoz

Causo de Quase Morte*

Morri, por algum tempo. Não lembro de nada, nem fui lembrado: morrer é não lembrar.
Dizem que um rapaz caiu nas pedras. Socorreram-no, verificaram-lhe os olhos, o pulso, e pensaram não mais haver vida em meio ao sangue. Talvez eu seja esse rapaz. Ao menos, temos essa cicatriz em comum.
Um amigo sempre que podia me contava o que tinha lido em um livro: que quando estamos à beira de um abismo, escutamos um chamado dele a nos convidar. É possível que eu tenha aceitado o convite.
Fico imaginando meu corpo - ou do rapaz -, triste e sem vida, sobre as pedras, e sinto pena. Não sei bem por que, mas sou capaz mesmo de chorar. Não vejo maior significado em minha morte do que essa comovida tristeza que sinto. Eu teria enfim encontrado o mar.
Lembro de outras vezes em que quase morri, por acidente, ou pelo amor que não encontrei, e no fim, resta-me essa comovida tristeza.
A vida insiste.
E o seu filho persiste, mãe.

Bruno*

sábado, janeiro 19, 2008

Se virares pescador...

carta primeira

A semana tem sido difícil. A chuva, somada a todo o lixo que as pessoas insistem em lançar pelas ruas: de seus veículos particulares; dos coletivos – mesmo os motoristas e cobradores, que não são passageiros, têm esse infeliz hábito –; de suas transeuntes mãos; de suas janelas domiciliares e também das comercias; e de qualquer oportunidade que lhes vem à mente em qualquer lugar e/ou circunstância... Enfim, a chuva... somada a todo o lixo e a todo o concreto que o Homem insiste em assentar sobre o que um dia foi a Natureza – ainda hoje chamada de Mãe, o que me faz pensar na alegria de uma mãe que recebesse tais carinhos de suas próprias proles, como ter a própria vagina concretada pelo filho mais velho e, posteriormente, por morbidez inexplicável (compreensível, porém), receber de seus filhos mais novos, em sua face, a merda que produzissem dos alimentos que ela mesma a eles tenha dado –... essa equação toda tem levado à morte inocentes pessoas culpadas, além de aumentar o já quotidiano caos, o que só aumenta a violência tão potencial no ser geral humano. Por que insisto em reproduzir tais obviedades? Perdoe...

No escritório, correria. Prazo pra isso, prazo praquilo. Prazo pra prazo. Essa condição, somada a todas as doenças mentais que cada qual traz dentro de si, tem feito de mim uma pessoa um tanto impotentemente margurada. Não sou capaz de ouvir as histórias particulares que todos trocam entre si senão com a insatisfação cósmica de quem é obrigado a ter as próprias asas mentais e artísticas podadas dia-a-dia em troca de ser mínima e miseravelmente capaz de pagar contas. E elas não cessam de chegar às minhas mãos e a meus olhos, assim como não cessam de chegar aos meus ouvidos e à minha resignada ira toda sorte de mesquinharia que um ser humano apenas consegue produzir. Imagine o poder disso multiplicado por mil e elevado à enésima potência. A música que corre em mim em suspensão forçada, meu dançante corpo percorrendo com passos indiferentes caminhos tristemente habituais... Meus olhos, vendo toda a maravilha do mundo, impossibilitados de gravar cenas e paisagens como no momento exato delas conseguiriam, caso dispusessem... de tempo.
Não, não há tempo, meu caro. Não há tempo pra se meter o nariz dentro de uma flor vistosa – ainda que pra constatar que ela seja apenas bela e não perfumada. Não há tempo pra se carregar o carrinho de feira da senhora idosa por quem se passa com pressa rumo às contas que se tem de pagar – ainda que pra constatar a rabugice da velha. Não há tempo pra se parar o carro num cruzamento – onde a lei manda (?!) que se pare – pra que atravesse uma moça prenha – ainda que se pense na possibilidade de aquele feto vir a ser mais um político corrupto do mundo. E nem há o tempo de se comprar uma rosa amarela pra moça a quem se quer bem, pois ela não quer parar seu próprio tempo pra recebê-la, pra acariciá-la, pra cuidar dela com água e uma boa conversa tão mais necessária ao ser humano quanto à própria flor. Não, não há tempo. Não há o tempo de se ler um bom livro, nem o de escrever palavras carinhosas quaisquer a quem se queira. Não há o tempo de um sono bom sem turbulências, pois tudo que não é turbulência é feito com pressa e/ou com distanciamento. Só há o tempo do ônibus – sempre ainda mais atrasado do que eu mesmo, além de lotado. O tempo dos vagões – sempre plausivelmente bagunçado por alguém que desiste nos trilhos. O tempo dos bancos – sempre indiferentemente pontual. O tempo do trânsito – sempre indiferente aos pedestres, aqueles reles seres que inventaram o automóvel.

E há o tempo do amor refugado, do beijo não dado, do silêncio forçado, do abraço guardado, do carinho não trocado.

Mas não há porquê de se preocupar com tais ocupações, meu caro. Sigo insistindo em transgredir todas essas leis que a estupidez e cegueira humana produziram em prol de sabe-se lá o que. Alguns me vêem como louco. Outros como imbecil. Em qualquer dos casos, têm lá suas [esquisitamente enraizadas] razões.
A música que em meus ouvidos toca ameniza tudo. E a sua ausência física não me impede de sempre tentar expandir meus sentidos, e de buscar sempre incorrer em erros novos.

...dê um mergulho por mim.

Abraço,

Tabebuia Chrysotricha

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Repouso

POEMA PARA UM RITO FÚNEBRE
PARTE II

(ou A QUEM POSSA INTERESSAR)

Que esse teu último descanso nos faça pensar:

na saudade que é cada reencontro,
na despedida que é cada aperto de mão,
no adeus que é cada beijo,
na morte que é cada abraço.

E que o termo de cada coisa se transforme:

na serenidade de uma bela imagem,
numa lágrima que escorra por um sorriso,
num brinde à saúde dos que ficam,
na aceitação de não sermos senhores de nada.

Vida longa aos que se foram.

E que em paz descansem
os que ainda não.


Algoz

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Pescaria*

Para a arte, pescaria ou amor, não tive dons:
Virei pescador.


Bruno*

Conto Fantástico*

Moro em uma vila de pescadores. No bom simples, levamos a vida diária, eu e meus vizinhos. As crianças brincam em terra, feito bichos livres. A mãe cuida do lar e o pai dos trabalhos do mar, enquanto eu sigo distraindo-me em meus pequenos afazeres: cozinhar, limpar a casa, dormir - em terras de muito sol, o cochilo na rede é atividade muito séria.
E foi num desses cochilos vespertinos que o inusitado aconteceu: meus vizinhos transmutaram-se em nove lindas chicas chilenas. Sim, não uma: nove! Como nos contos de fada - faço questão, porém, de insistir na veracidade destes fatos, pois não tenho talentos para ficção. Sem maiores explicações, minha vista e coração despreparados depararam-se com um onírico esquadrão celestial de ninfas chilenas. Quais as possibilidades de uma coisa assim acontecer? É absurdo. E eu que já desenvolvera afeto por meus ruidosos vizinhos, com seus singelos modos de expressar tudo em alto e bom berro. Eu que com eles aprendi a melodiosa sabedoria romântica da música brega, vi-os desvanescer.
Uma destas chicas, por essas manhãs, perguntou-me se "el tiempo" abriria. Respondi que talvez, mais tarde. A verdade é que eu, orgulhoso de minhas origens praianas, e pretenso conhecedor das naturezas do tempo, não sabia se faria sol. (É possível que isso se deva à minha constante ocupação com os estudos que faço sobre esse interior.) Senti-me "el niño". Um absurdo.
E nas ruas, não é diferente: um festival de eventos surreais. Seres que não existem desfilam impunemente pelo passeio, isentas da realidade pouca, exuberando belezas; anjos espanhóis, com enormes flores em seus longos cabelos, desafiam-nos a razão; frutos da terra a explodir nossas retinas...
Enfim, deixo aqui meu comovido testemunho de que as autoridades da ordem comum das coisas têm negligenciado muito a delicada realidade deste lugar.

Bruno*

Última chamada?

Pensando o aeroporto como um dos grandes palcos da vida. Lá amores despedem-se e reencontram-se, conhecem-se e morrem antes de nascerem – numa troca de olhares firme e intensa ou numa cortesia de fila qualquer. Não desmerecendo as rodoviárias, ou mesmo os portos, ou qualquer outro [tipo de] lugar onde tais fissuras se passem. E em considerar neles, quão triste não é estar-se em um aeroporto esperando a chegada – ou o retorno – do amor... mas o amor não embarcou de onde deveria? No táxi, no ônibus, no carro que dava a destinatória carona, tardiamente – um intervalo de tempo antes de as coisas se definirem, ainda que a definição seja sempre uma incógnita reversível no momento seguinte –, tardiamente o amor se desdecide, faz um retorno... termina numa rodoviária, em outro bairro, em outra cidade, pega um cruzeiro qualquer e... não aparece nunca mais. E enquanto casais de amantes – de amigos, de irmãos – se abraçam naquela entrega sempre questionável do grande palco que é o aeroporto, queda-se a cogitar nos porquês de tudo: de estar-se só; de estar-se mal acompanhado; de estar-se – apesar de bem acompanhado – sentindo como que a falta de um membro do próprio corpo que está lá, grudado ao resto, mas não funciona. O amor não quis embarcar pra Paris com a promessa – crível mesmo pelo próprio amor – de café na cama e vista pra Torre? Por quê? – pergunta-se vendo sorrisos e carinhos aqui e ali às quase fartas. Mas não há porquê. O vôo tem de sair, e abandoná-lo não fará a espera transformar em realidade o desejo. O amor às vezes opta pela periferia do interior do sertão, quando oferecemos Paris. Mas Paris é apenas Paris. Nem todos a querem conhecer, nem todos a desejam. Pode ser por medo de imensa expectativa. Mas pode ser por verem em Botucatu a satisfação que nenhuma Torre lhes pode dar. Por quê? Não há porquê. Há apenas outros vôos.
E nenhuma prisão que nos impeça de desejar – sem esperar, por sanidade –, saboreando e sorrindo honestamente um bom vinho com vista pra Torre, que à porta batam.


Algoz

terça-feira, janeiro 15, 2008

A primeira despedida

E apesar da inicial intensidade e posterior insegurança com que aquelas mulheres passaram em nossas vidas naquele ano – experiências e memórias gravadas com indelével triste-beleza que teriam eventualmente nos sugado pra vala comum do grande e amorfo sofrimento humano, caso não tivéssemos certa paciência dentro da doença que nos acometia (eu sempre mais entregue) –, apesar da força e importância que fizemos com que elas tivessem no grande divisor de águas que aquele ano foi, dezembro se despedia mostrando que delas e tudo que delas trazíamos – entre engasgados, resolvidos, incertos – sobrávamos nós. Vivos, um tanto mais serenos, e presentes.
Na tranqüila quase-deserta praia estávamos, acompanhados de poucas porém queridas pessoas. Sem pensar nas possíveis escolhas não feitas, sem lamentar os possíveis arrependimentos dos feitos, estávamos ali, as imensidões do mar e do céu ao quase-alcance de nossos pés e de nossas mentes.
E se naquela mesma ilha, a uma ou duas praias de distância, estava aquela graça de menina por quem os ponteiros de meus pensamentos se perdiam do relógio do mundo, não pensei. Ela não estava onde não queria estar, e tenho que naquelas horas – em que o ano vinha chegando e passando o bastão pro outro e diminuindo o ritmo até que o outro se quedasse irreversivelmente só na pista da vida –, a carga de desejo em mim era muito baixa. O tempo apenas passava, e era bom estar ali. Nem melhor, nem pior, do que poderia ser [o que não era].
E quase sem trocarmos palavra, e quase sem trocarmos sorriso, quase sem nos olharmos sequer, a simbológica virada do ano tinha acontecido e estávamos de volta à casa que em onze pessoas dividíamos. Ainda em quase-silêncio, nos despedimos naquele início de madrugada. E cada um, com seus próprios pensamentos, se retirou pra seu próprio canto, pra seu próprio sono.
O primeiro sol do ano começava a arder a pele quando a casa começou a se movimentar. A água sempre fria tirando os copos da pia e as remelas dos olhos e o hálito das bocas e passando o café e esfriando as cabeças de corpos suados pela noite sempre morna, algumas frutas e pães quebrando o último álcool do ano que virou história. O sol subindo. E nosso silêncio maior levemente suspenso (o meu sempre mais) pelas amenidades trocadas com quase todos os outros naquela dança de mãos e copos e pratos e cigarros e garrafas comum a qualquer manhã como aquela, em qualquer dia de qualquer ano. Era apenas mais um parágrafo de mais um capítulo do grande livro da vida, que por boa sorte nos colocava juntos naquelas linhas, apesar das vírgulas que nós mesmos trazíamos – com mútuo respeito – a nos separar aqui e ali.
De volta à cidade grande, as obrigações voltaram a espaçar nosso convívio. Mas não duraria mais do que dois dias. Naquele sábado à noite nos encontramos em sua festa de despedida, e na noite seguinte lá estávamos, no aeroporto, fumando talvez nosso último cigarro em comunhão, ao lado de uma moça bonita – que nos forçou leve-resignada troca de palavra –, e a dez minutos do paredão indiferente atrás do qual se vão pessoas queridas – talvez pra nunca mais.
Estamos, enfim, a poucos metros do atroz funcionário do aeroporto que insiste em deixar passar aqueles que nosso ego não quer que passem – mas a quem queremos bem, acima de qualquer coisa.
E enquanto outros abraços antecedem o meu, vejo dois senhores – uniformizados para pilotar – se aproximando do tal funcionário – que certamente pra eles não é tão atroz assim. Caminham juntos e trocam muito provavelmente palavras amigáveis, pois sorriem certa tranqüilidade que me faz pensar ser o troféu que apenas aqueles que já se despediram demais na vida – e de suas próprias vidas – podem alcançar. E que poucos alcançam. Apresentam seus papéis, passam. E me deixam meditando se, independentemente de mulher e filhos, conseguiremos caminhar a vida pra sermos qualquer coisa parecida com Braga e seus amigos na praia.
Seu passo em minha direção me traz de volta à realidade. Um abraço forte, com poucas – não necessárias – palavras, e lá se vai, com suas duas malas e seu cartão de embarque, meu amigo. Mostra o papel e passa, olha rapidamente pra trás, ergue sorrindo quase amarelo a mão quase estática, adeus.
E segue a vida.


Algoz

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Poema fora de lugar e de tempo

Hão de vir águas de calmaria
empapar essa seca-insana correria;
esburacar essa estrada veloz;
acalmar os bois que pastam
ao olhar [feito atroz
pelas coisas que nunca cessam
[de pedir por sempre mais.

Hão de vir essas águas límpidas
que aos nossos pés refrescarão.
E de nossos olhos cairão
Lágrimas de bem-aventurança.

Hão de vir.

E haveremos de ir
E de estar.


Algoz