Confraternização

(Na geladeira)

sábado, julho 26, 2008

Evento*

Das coisas que acontecem o tempo todo, o que se destaca entre elas torna-se um evento. Pois bem: era uma encruzilhada. Em suas esquinas, havia uma igreja que parecia abandonada, uma praça, um outro comércio qualquer e um bar do qual eu acompanhava o movimento das coisas. Notei espantado o menino que em menos de um minuto adentrou o recinto e se pôs habilidosamente a devorar um pedaço de queijo e outro de pamonha, separados em pratos individuais. Sem receio, com técnica e precisão, o menino levava-os à boca numa faca de cerra e ponta. Fiquei admirado. Não só pela combinação inusitada de alimentos, até então desconhecida por mim, mas também pelo perigoso ato de levar a faca diretamente à boca, o que fui severamente advertido de fazer quando criança - embora achasse muito mais prático esse procedimento . O pai do menino e dono do bar, no entanto, não compartilhava dessa preocupação; ao contrário, assistia com certo orgulho a coragem e destreza do filho, que terminou sua refeição vespertina e saltou por cima do balcão em direção à rua. "As crianças são insanas".
Depois de um café, um chocolate, um cigarro e uma Coca, devidamente entupido de cafeína, paguei minha conta e parei um instante em frente ao bar. Inevitavelmente, deixei-me levar pelo vislumbramento dos arredores: transeuntes, um mendigo, o trânsito intenso, os sinais abrindo e fechando, barulho. Atravessei uma parte da encruzilhada e me sentei num banco de praça daquela cidade distante, próximo ao ponto de táxi; as lojas em frente. "Toda cidade é uma cidade. Todas as cidades do mundo são iguais. São diferentes, mas funcionam do mesmo jeito, têm sempre os mesmos movimentos. Sim, cada uma delas tem sua cor local, mas todas estão baseadas em alguns poucos conceitos, todas tem uma praça, uma igreja e uma sorveteria, shoppings, bairros nobres e pobres, e estão todas sujeitas às regras invisíveis da ordem vigente, determinadas por características que definem o que é centro ou interior, o que provavelmente é mais um dos efeitos da globalização, ou talvez de uma cultura de massa que impõe uma mesma padronização arquitetônica e estrutural." Foi o que me ocorreu, e tentei organizar em palavras, enquanto estava sentado naquele banco, daquela praça que poderia ser mais uma das infinitas "praça Castro Alves" espalhadas pelo Brasil, localizadas ao lado de uma das "avenidas Rui Barbosa".
Ali permaneci mais alguns minutos até que chegasse minha hora de partir, deixando para trás a encruzilhada, o menino, a praça, a cidade, levando comigo somente a agradável recordação desse breve evento e a certeza de que o mundo continuaria inalterável em seu eixo.


Bruno*

3 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

A vida é um eterno evento, Filhinho, e sempre, conforme nosso
estado de espirito, observamos, conforme ela nos apresenta.


meu filho , meu poeta!!!

julho 30, 2008 11:02 PM  
Anonymous Anônimo disse...

O evento está no olhar. E você sabe ver. Saudações

agosto 21, 2008 12:22 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Bruno...consegui visualizar a carinha da "criança insana"...Viajei por alguns minutos em seu texto...Muito bom mesmo! E nas entrelinhas, uma crítica para a "mesmice"...Sabe que eu já havia pensado sobre isso há poucas semanas? Parabéns pelo texto!
Um beijo
Tati

setembro 02, 2008 11:55 PM  

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