Confraternização

(Na geladeira)

quarta-feira, junho 27, 2007

Diafragma

Imaginemos a seguinte cena real: descartados e abandonados, assim estamos por um mês, dois, três. Mas continuamos no dia um dessa era de desgosto. Desgosto. Tentamos, da afirmação à negação, passando inclusive pelos pontos colaterais (com trocadilho), diversos métodos de mudar esse dia de mais de mil horas. Nada. Então, num desespero como que letárgico, conversamos com uma pessoa, duas, três. Mas continuamos no dia um dessa era de desgosto: algumas frases soltas, algozes, ecoando sozinhas no estômago, e a boca que as pronunciou... quem viu? E como queremos ver! Mas merecemos apenas sentir, em silêncio, o gosto acre da vida em todas as coisas: enquanto comemos, enquanto bebemos, enquanto fumamos, enquanto dormimos, enquanto nos livramos de nossos pêlos, enquanto estudamos, enquanto trabalhamos. Então percebemos, sem maldade – e poderia ser até constrangedor –, que os fulanos, beltranos e sicranos com quem conversamos as inutilidades que o desgosto pelas coisas propicia, esses pobres-diabos são a mesma inexistente personagem que, puta que nos pariu!, não substitui os Torquemadas de nossos estômagos, a quem tanto queremos dar colo e carinho. Fulanos, beltranos e sicranos, além de não preencherem o já-não-mais existente impreenchível, ainda enfatizam a dor da dor da ausência de nossos já extintos – apesar de ainda presentes – carcereiros. Mistério? E pra que essa imagem não pareça apenas um conflito de vozes mal rasgado e mal costurado, eis o porquê de serem todos a mesma inexistente personagem: depois de falarmos com cada uma dessas pessoas, não sabemos mais quem disse o quê, ninguém tem voz nem rosto nem corpo. E todas as frases ditas por cada pessoa poderiam muito bem ter sido ditas cada uma por todas. E ninguém que esteja do lado de fora de nosso estômago tem qualquer valor. É triste – pra todos –, mas é assim.
Seremos os sicranos – os últimos da história! – de nossos algozes? Até que se mande um sinal de fumaça, parece que sim. Porque, aparentemente, selaram a chaminé.
A pergunta: como não se pré ocupar do que há de acontecer, sem qualquer explicação prévia ou posterior, aos diafragmas de todos nós? De todos nós.
Todos.


Algoz

terça-feira, junho 26, 2007

Vinho branco

Parei na frente da vitrine e pedi. Não. Bati o pé no chão. Não. Bati os dois pés. Não. Comecei a chorar. Filho, a mamãe só recebe amanhã, tá? ... amanhã a gente compra. Comecei a gritar. Resumo da ópera: eram tempos difíceis, ela assinou o cheque chorando. Nunca me esqueci. Saindo da loja, eu saltitante, ela limpando as lágrimas. Meus sorrisos foram ficando pelo caminho. Devo ter até dormido com aquele Castelo de Greyscow, pra tentar aproveitar ao máximo e, assim, tentar compensar a dor que eu tinha causado. Aprendi sobre vencimentos em duas cenas, e pedir presentes foi gradualmente sumindo da minha lista de coisas a fazer na vida capitalista. Anos mais tarde, era preciso me perguntar se eu não estava precisando de nada – e normalmente eu estava.
Coruja, coruja, coruja. Dizem que é mal do signo. Dizem que é mal do útero. Qualquer que seja a explicação, fato é: coruja, coruja, coruja. Chega a irritar, mas essa parte aqui não cabe.
Eu já era velho, fiz merda. Chegando em casa fui chorar em seu colo, ajoelhado, sob seu olhar de total reprovação. As palavras foram duras e sem piedade. Mas o colo estava lá. A angústia daquele dia poderia ter me cortado na cozinha. Mas o colo permitiu que essa hipótese não fosse testada.
Coruja, coruja, coruja.
Mais recentemente, era madrugada, e apesar de não esperarmos, esperávamos por uma notícia muito triste. Poderia vir a qualquer momento. Três da manhã, a pia cheia de louça. E se as duas últimas semanas tinham sido cansativas pra todos, foram, em todos os aspectos, mais cansativas pra ela. A louça na pia. Lavei. Deve ter sido pela hora do fato. Fui dormir. Duas horas depois a notícia chegou. E naquela tarde de encontros, contei o acontecido a um amigo. Ele disse: Esse negócio de lavar a louça pra mãe de madrugada, sabe o que é isso? Eu: O que? E ele: É amor.
Coruja, coruja, coruja.
E mais recentemente ainda, apareceu em visita a ex-namorada que, depois de tantos anos, continua sendo unanimidade nacional em casa. Recebida com aquele abraço e aquele brilho nos olhos. Eu já sabia o que viria... Ficou uma hora e pouco. Foi embora antes do peixe, que estava uma delícia. Acabada a janta, começou: Hum, ela perdeu esse peixe, hein? Como eu já sabia, respondi só com a cabeça. No dia seguinte a língua deve ter coçado demais: Ela tá namorando? Respondi: Sim. E mais uma vez eu já sabia... Ela emendou: Então suas chances acabaram? Eu: rá, rá, rá. E ela, com seus olhinhos apertados, sorrindo de mim. E é sempre assim.
Coruja, coruja, coruja.
E agora que já estamos todos velhos – eu, muito provavelmente, mais – arranca-rabo vira silêncio em duas palavras. E o resto é um grande abraço, tímido, silencioso, e poucas vezes físico. Mas é um abraço. Cheio de asas.
Coruja, coruja, coruja.


Algoz

sexta-feira, junho 22, 2007

Boa Companhia*

Esse gosto forte
Cara feia não tira
Do meu bigode, cuido eu
Do fim das coisas, cuida o tempo

Afinal, quem sabe

Deus também pecou
Quando permitiu a solidão
Mas, não há vergonha nisso
Só um gesto humilde

Afinal, quem sabe

E aquela certeza
Do corpo que o seu escolheu
Até o fim será, só
Uma boa companhia


Bruno* - B&B

quinta-feira, junho 21, 2007

Milho e malte

POEMA AOS BONS VÍCIOS

Devia mesmo fazer mais
[de um ano que não a via.

Você precisa de outros
[vícios – ela disse –
Que não esses.

Eu sorri.
De que vícios eu preciso?
– perguntei –
[Do amor?

Ela sorriu.
(como pôde?)
É, o amor... é uma boa.

Não... – continuei sorrindo.
Essa droga já me consumiu demais.


Algoz

quarta-feira, junho 20, 2007

O dicionário

Não deveria o dicionário ser um dos melhores amigos do homem que se intitula civilizado? Para metáforas, ironias, ladainhas, fazer-se passar por mais, fazer-se passar por menos, falsidades, crueldades e tantas outras coisas mais.
Sobretudo pra procurarmos as palavras certas pra cada discurso. E as mais lindas pra embalar nossos diletos. Mas chega o tempo em que a melodia desse mimo se impõe tão bela e tão forte à orquestra do nosso ser, que o dicionário só serve pra escrever textos inúteis, pois as palavras se fazem inúteis pro que nunca irão entender. Pro que nem mesmo nós mesmos iremos. E enquanto o Ludwig dentro de nós goza transcendentalmente a beleza da tal melodia, já começa a se preparar pro Policarpo que a esterilidade do alcance da sinfonia vai trazer à tona. Nossos diletos nos dão as costas, e uma vez mais nos toma de assalto uma vontade insana de jogar o dicionário no chão, chutá-lo e rasgá-lo. Mas parece que, afinal de contas, vamos acabar ficando com ele: amassaremos suas "roupas" com nossas mãos trêmulas, enquanto choraremos e nos descabelaremos em seu "colo". E as palavrinhas, coitadas: são umas filhas de uma grande puta que nada fazem por nós senão nos enterrar em desespero.


Algoz

Divagar*

Esse samba lento
Que eu fiz
Da minha vida
Dá vontade
De chorinho
Em frente ao mar
Sentar e ver o sol
Que se vai, lento

O meu amor devagar

Minha mulher há de vir
Ela não veio um dia

Hoje, esse bandolim

Bruno* - B&B

terça-feira, junho 19, 2007

O primeiro dia?

Como diria aquele filósofo tupiniquim: “Melhor pingar do que faltar”. Então comecei em novo emprego que mal sabia até quando poderia conservar. Duas semanas, talvez. E seria o tempo que eu teria pra convencer três pessoas de que era eficiente o suficiente pra que ficassem comigo por mais. Capaz eu era, no primeiro dia senti isso e sei que os fiz sentir o mesmo. Mas minha confiança nessa história de ser capaz estava abalada, eu que tinha sido – muito recentemente – sumariamente ceifado da vida de alguém, apesar de minha suposta capacidade. Desci a mesma rua por onde, dois meses antes, caminhava contente a caminho de uns documentos que me abriam a possibilidade das portas de um mundo todo novo. Tinha sonhos. Agora – os documentos engavetados –, descia a mesma rua, ceticamente, atrás de uns trocados a mais que me fizessem menos inseto, e de ocupar meu tempo com tal intento. Qual o quê? O fato de estar ocupado, e ocupado ganhando dinheiro – era pouco, mas era dinheiro –, me fazia de repente sonhar de novo. Então, contra a minha própria vontade, e contra a vontade de qualquer um, me peguei – no primeiro dia de trabalho –, por incontáveis vezes, absorto no pensamento daquela mulher. Por que eu sonhava, se sabia que era inútil? Porque eu era um inútil. Um inútil cujos sentimentos se recusavam a morrer. Quereriam meus sentimentos que eu, em lugar deles, morresse? É cedo. Que culpa tinha eu de eles serem inúteis? O dia passou.
Subia de volta a tal rua, esquecido de mim e de minhas desimportâncias. Nem me lembrava de ter acabado de cruzar a alameda onde, em meus assassinados sonhos de um tempo nada remoto, eu tinha descoberto um restaurantezinho aconchegante e acessível pra levá-la. A mesma alameda onde então trabalhava o cara que realizava os meus sonhos. Os meus inúteis e risíveis sonhos. Nem me lembrava. Mas então – e isso só pode ter sido castigo pela minha idiotice –, eis que vem correndo, na minha direção, o dito-cujo. Sim, o fulano que dormia feliz as minhas noites de desassossego. Dormiria feliz? Dormiria? Sangue em meus olhos. Continuei meu caminho. Parei na primeira padaria que vi. Entrei. Precisava comer, apesar de minha fome ter virado apatia três minutos antes. Mas a visão daquelas frituras no balcão me fez virar as costas. De repente meu corpo se enjoava, uma vez mais, pela mais uma vez renovada dor da eterna surra do destino.
Só queria chegar em casa. E precisava muito disso. O metrô, insuportável. Interessante: nós suportamos o insuportável. E um metrô insuportável é das bobagens mais ínfimas. Que viesse o ônibus! E ele veio. Veio engrossar a lista de ingredientes que, misturados numa determinada cabeça e em uma determinada situação, fazem a gente perder o contato com o sofrimento humano. Que acotovelassem a pobre senhorinha, que a acotovelassem contra mim, que me acotovelassem contra a grávida que dividia seu assento com meus joelhos. Que diferença faria nesse bolo mal nutrido e irremediavelmente chamuscado que os homens insistem em confeitar?
Cheguei em casa e as flores de maio estavam murchas. E eu, que por semanas a fio havia me sentido triste por não poder dividir com minha dileta a alegria do paroxismo daquelas flores, agora já não me sentia nem alegre nem triste. Sentia apenas a real possibilidade do dia em que eu abraçaria um cavalo e choraria.
Mas os vivos continuam mortos, e os mortos continuam vivos.


Algoz

quinta-feira, junho 14, 2007

Bom Dia*

Tragam as algemas
Se necessário
Que o caso é sério
Mas, é que de repente, assim
Como quem sabe o que é bom
Me veio uma vontade louca
De dormir ao seu lado
E acordar, então?
Dormir um sono, abraçado
Com seus olhos claros
Bom dia, dizem os beijos
Um cheiro na nuca
Meus carinhos são seu leito
Seu reposo, a minha paz

Bruno* - B&B

Confusão*

Meu bem, meu bem
Não confunda amor com casamento
Não confunda deus com religião
Meu bem, meu bem
Não confunda beijo com compromisso
Não confunda flor com paixão
Meu bem, meu bem
Silêncio não é tristeza
Distância não é ausência
Meu bem, ouça uma canção
Não grite, meu bem
Não bata, meu bem
Não confunda pensar e fazer
Meu bem, não faça confusão
Trabalho não é dinheiro, meu bem
Faça do desejo um sentimento bom, meu bem
Faça do tempo, distração, meu bem
Não faça confusão, meu bem
Não se jogue da guia, meu bem
A vida é assim, meu bem

Bruno* - B&B

Mais um...

POEMA MEIO-INÚTIL

Um amigo que sabe
que não te preenche
[certa solidão

E conhece o alguém
que a preencheria
[com a simples presença;

E se compadece
da tua nulidade
[diante dessa ausência;

E apesar de gostar
desse outro alguém
E torcer em silêncio
pelo impossível,

Ainda assim te golpeia
com palavras duras
[de certezas fatalistas.

Esse amigo vale tanto
que nem o valor
da própria vida
vale como parâmetro
para medir o seu valor.


Algoz

quarta-feira, junho 13, 2007

Dias desditados

Fazia exatas duas semanas que nada sabíamos da pessoa que mais queríamos saber. É preciso saber muitos ditados pra suportar certas injustiças da vida. Porque os ditados nos mostram que não sabemos nada daquilo tudo que sabemos; porque os ditados explicam que não há injustiças na vida. A justiça é uma entidade ambígua e cruel, auto regulada e, em última instância, inexistente. E apesar de os ditados nos mostrarem nossas misérias com aquele ar de sabedoria moleca – que nos faz pensar que estamos a mitigar nossa dor, enquanto por vezes ela está lá, se alimentando dos pensamentos, das sensações, das memórias e de todo o resto que passa por nossos neurônios sem que saibamos bem o que se está a passar –, apesar disso, é preciso sabê-los. Muitos deles. Pra suportar todas as justiças da vida. E em certos dias essa ou aquela dor volta a todo o vapor, como um vazio que preenche tanto a nossa inércia quanto o nosso movimento. Não há ânimo que faça nosso corpo se levantar da cama num dia sem compromissos, nem recompensa que valha por uma tarde perdida na cozinha, preparando um bom jantar que não será desfrutado por uma específica pessoa. Uma, apenas. Um vazio que... lágrimas. E a ira galáctica da inutilidade.


Algoz

terça-feira, junho 12, 2007

Explicação*

Um corpo chamado sol
Sol e saudade
O mar
É sempre amor
Céu e saudade
O mar
A solidão
É sempre amor
Céu e mar
É sempre solidão
Palavra e saudade
Essa canção

Bruno* - B&B (master insatisfeito)

Dias sem sentido

Era uma segunda-feira. Fazia exatas duas semanas que eu nada sabia da pessoa que mais queria saber. Em certos momentos é preciso saber muitos ditados, pra suportar a vida. Passeava com uma amiga e um seu conhecido vindo de Londres. Fomos ao centro da cidade, ele queria comprar um chapéu. Eu estava com a cabeça em outras paragens, então dava passos incertos, perdido num lugar conhecido, dando voltas inúteis pra chegar ao outro lado de uma rua, subindo escadas quando já estávamos no piso certo de uma estação do metrô, querendo voltar pra lugares de onde não tínhamos vindo, e cometendo as mesmas dislogias, uma, duas, três vezes...
No dia anterior conversávamos sobre livros e solidão, relacionamentos e viagens. Ele contava que tinha se resolvido a ficar viajando pela américa esquecida, por três ou quatro meses, por causa de um relacionamento morto aos quase três anos de existência. Eu pensava com meus botões que nós, brasileiros, somos na grande maioria realmente uns fodidos e mal pagos. Não podemos espairecer nossas desilusões viajando ao Reino Unido, por exemplo. E por três meses? Quatro? É de chorar.
Mas então, no dia seguinte – a tal segunda-feira – lá estávamos passeando pela cidade, eu pensando. Em coisas fora de lugar e de tempo. Voltávamos, já, quando entra no vagão um casal aparentemente muito satisfeito e ainda sonhador, o rapaz e a moça cada um com seus mais ou menos cinqüenta anos. Abraçadinhos, cheios de chamegos e beijinhos. Nós três sentados naquele cantinho recluso ao lado da cabine, o casal chegou e parou na nossa frente. Começaram a conversar no mais britânico inglês, pro pasmo geral de nós três. Emudecemos, cada um por seu próprio motivo, nunca depois discutido.
Fiquei pensando naquele casal, e na possibilidade – sempre real, apesar de improvável – de eles serem londrinos, como nosso conviva, e quiçá morarem os três no mesmo bairro, na mesma rua, no mesmo quarteirão e, ainda assim, nunca terem sequer se visto. E nesse momento pensei que o mundo é tão grande e tão pequeno ao mesmo tempo, que pensar sobre isso faz uma melancolia desgraçada. Porque encontramos e conhecemos sem qualquer lógica pessoas tão distantes, e temos vizinhos que nunca encontraremos. Pensei no amor. Naquela pessoa que não sabia nada de mim pelas últimas duas semanas, e as passou sem se importar com isso, por não ser vizinha desse pobre-diabo que é tão vizinho dela.
Por vezes o amor parece não ter vizinho algum, aqui ou no Reino Unido ou em qualquer Grécia dos Tempos. E a casa – desse amor sem vizinho – toda geminada a outra que, talvez, não seja tão geminada assim a ela. E futuro nenhum dará conta disso.


Algoz

quinta-feira, junho 07, 2007

Luto colorido

RASCUNHO DE CARTA A UM VELHO FANFARRÃO

As galinhas estão órfãs,
as putinhas e as bichinhas
[também.

O fanfarrão do Oscar
[muito honrado
também lá estava
[carregando seus últimos metros.

Mais de cem pessoas
[seu último sono velaram.
(Uma festa!)

Descansa, velho!
Oitenta e cinco anos assim...
(que inveja!)
...só rindo.


Algoz

quarta-feira, junho 06, 2007

Desorientação

Será possível que mesmo num momento extremo, derradeiro, sejamos capazes de pensar numa pessoa distante – em cada sentido – e numa situação momentaneamente impossível? Será? É dificílimo balancear razão e emoção quando falta uma viga. E não se sabe que viga é, e nem de onde tirar peso. E a insustentável leveza do ser não passa de um livro, sem sentido e de inútil argumento.


Algoz

terça-feira, junho 05, 2007

O dia que não veio

"Wise men say only fools rush in
But I can't help
falling in love with you."
(
G. WEISS / H. PERETTI / L. CREATORE)


Naquela vila inglesa há uma casinha de dois quartos. Lugar tranqüilo, bem localizado e bem arborizado. Até pareceria mentira. Os quartos são grandes, uma cama gigante cabe em qualquer um deles sem prejudicar movimentos bem folgados e espaçosos. Da janela do quarto da frente se vê a vila, com a rua lá fora de um lado, e o pomar e o pequeno parquinho pras crianças do outro, no fundo da vila. No piso debaixo quase a mesma disposição: a sala fazendo o espaço de um dos quartos, a cozinha – americana – o espaço do outro, e um lavabo usando o mesmo encanamento do belo banheiro que acompanha os quartos. Um sofá em ele num dos cantos e dois pufes jogados é todo o necessário pra manter a sala espaçosa e harmoniosa. Na cozinha uma mesa de seis lugares... Além do balcão, onde dois pares de pessoas podem comer e beber e papear tranqüilamente, sentados naqueles banquinhos estofados e em estilo clássico. E debaixo disso – do quarto da frente e da sala –, a garagem pra dois carros, onde em um dos lados vai muito bem um belo sofá de cinco, seis lugares. E atrás da garagem – debaixo do quarto do fundo e da cozinha –, a lavanderia e mais um lavabo, e o resto do espaço pronto pra virar qualquer coisa que a imaginação ou a necessidade possam conceber.
Um pobre-diabo lá mora sozinho, povoando a cama, os pufes, os banquinhos e o sofá da garagem e tudo o mais com sua amarga imaginação de dias mediocremente felizes, com poucas porém importantes e verdadeiras pessoas, filhos – talvez – cacheados e sorridentes, cheios de olhos amendoados e curiosos. Trabalha meio período, não ganha muito mas está satisfeito. Tem tempo de preparar o café e fazer a janta. E também surpresas, com certa freqüência, pros seus entes e amigos que, também com freqüência, aparecem. E vive disso e pra isso. Passa ao menos um final de semana por mês viajando, e cada livro que lê é com o prazer de quem vive o último dia pra, não obstante, adormecer pensando nas frutas da manhã seguinte. A casa é alugada, mas satisfaz plenamente a idéia de lar que seus sonhos sonharam. E agradecido pela vida besta que leva, deitado na rede no quarto da frente, olha a parede com algumas das fotos preto-e-branco que tem feito ao longo do tempo.

***

Naquele pensionato, quarto apertado, está deitado um homem resignado, pensando em seu próprio suor, que mal paga as próprias contas e a própria cachaça. Há uma pia num dos cantos, que toda manhã usa pra escovar os dentes e se olhar no pequeno espelho na parede. Tem banheiro próprio – ao menos –, e depois do monótono banho do dia-a-dia, se veste e olha novamente pro espelho, e sente calafrios por sua irremediável vida. Pode mudar – e há de –, mas seus sonhos, ceifados, de certa forma o impedem. E caminhando pro ponto de ônibus, sente pena de seus pares, que com ele caminham de seus próprios nadas pra lugares nenhuns. Sente pena por serem tão parecidos com ele próprio: todos deslocados de um sonho que um dia talvez tenha sido possível.
Esse homem é o fantasma que habita a modesta casinha daquela vila inglesa. Mas não a mal assombra. Apenas sobe e desce suas escadas, observando a miséria humana em que vive a suposta família que a ocupa, com suas mesquinharias e móveis. Não há espaço pro sofá na garagem, nem pra imaginação na lavanderia. A mesa da cozinha mal é usada, e o café da manhã – pra quem toma –, é na rua, cada um por si.
E enquanto seu miserável fantasma se dói da dor da espectral família alheia, seu corpo repousa, com frio, na cama da qual se levantará, no dia seguinte do Tempo, pra escovar os dentes se olhando num pequeno espelho de moldura laranja.
O quarto de alguém vazio, a casa vazia de alguém.


Algoz