Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, janeiro 22, 2008

Rememoração de um aniversário

Creio que o resto da vida acontecia sem grandes desvios. Pessoas acordavam, pessoas se deitavam. Era uma quinta-feira, e era feriado. Senhoras muito idosas compravam seus legumes e suas verduras pelas ruas da cidade e garotos muito jovens pediam a elas – e a tantas outras pessoas, em tantos outros lugares – as esmolas que o mundo se acostumou a manusear. Certamente um sinal de escola tocava naquele momento. Mas não nessa cidade, que comemorava mais um seu aniversário – haveria algo pra se comemorar? –, e pensando bem era mês de férias. Mas o sinal, que tocava naquela escolinha do interior – ainda que apenas do interior de minha cabeça –, era um coração saltando pela boca do garoto tímido que durante a aula tinha finalmente enfrentado o próprio estômago e enviado ao objeto de seu humilde e honesto desejo – aquela menina de cabelos encaracoladamente pretos – um bilhetinho com que pedia a ela um encontro a sós durante o recreio. E o sinal era o recreio. E o recreio traria a resposta do bilhetinho, e a resposta do bilhetinho tinha que ser positiva, pra trazer outro pedido e outra resposta positiva e... tudo culminaria num beijo. E seria o primeiro beijo. E enquanto quisessem, nenhum dos dois esqueceria aquela história – ou parte dela que fosse. Assim corria a vida.
Era feriado, e era quinta-feira. Eu estava em casa, todo o meu amor calmamente borbulhando à espera de um chamado qualquer pra se fazer abraço, beijo, olhar, carícias e indizíveis outras tantas lindas coisas. Ela estava no trabalho, tinha trocado a sexta pela quinta, ou vice-versa. Houve o chamado. Eu não podia abrir as portas das coisas do mundo, não podia encostar muito nela, beijá-la nem pensar. Mas o destino, que às vezes favorece, me dava aquela hora junto daquela mulher, e os poucos passos que demos lado a lado faziam os poros do meu corpo se abrirem. E aqueles minutos intocáveis, sagrados, que passamos frente a frente na mesa daquele charmoso restaurante, trocando apenas nossos olhares e sorrisos carregados de tudo que nenhuma palavra pode macular... ah!, aqueles minutos... em que a vida acontecia sem grandes desvios, mas dentro de mim o Universo se expandia com beleza caoticamente intangível, e estar sentado naquela mesa não significava nada senão por meus olhos estarem a se perder por essa expansão cósmica através dos olhos amendoados daquela mulher.
Se eu a tivesse raptado naquele dia, feito o herói romântico da cabeça daquele menino do sinal do intervalo do pedido de namoro e de beijo... Não, eu não precisaria tê-la raptado. Aquele almoço foi talvez o maior pacto de sangue de nossas vidas.
Então a levei de volta... de volta a seu trabalho, a sua vida... e assim – como a sexta-feira traria em si mesma o final de semana –, eu me despedia dela por três longos dias, em que voltava exclusivamente a todas as pessoas que faziam parte de sua vida e que eu nunca conheci – à exceção de seu irmão e de seu noivo.
O recreio foi curto, as pessoas eram muitas, os bedéis obseravavam. Uma palavra talvez mal colocada, o medo certamente sempre presente, e o sinal novamente tocou. Agora o coração está apertado, chega mesmo a doer, fisicamente. Mas, aula vai, aula vem, estão perto um do outro, trocam sorrisos vez ou outra, deixam as mãos se encostarem, furtivamente trocam beijos e outros bilhetes. E na inocente crença do pobre-diabo, pensa que sua honesta ternura e seu gritante bem-querer e todo o resto que sente – e sabendo que, apesar de falar pelos cotovelos, as palavras não dão conta do que seu coraçãozinho pequeno sente em quase-explosão –, tudo enfim de que é feito e que tem pra oferecer... pensa que tudo aquilo é bastante e suficiente pra conquistar as graças desse seu intento.
Mas na saída vem um menino, que é de outra escola e um ano mais velho, e volta caminhando com ela pra casa. E o boleiro que há no menino volta pra quadra e joga com mais vontade, com mais aplicação, com mais habilidade, com mais força. E seus pés fazem amigos, e seus amigos trazem novos amores, e os novos amores novas desilusões, e tudo de novo e de novo e de novo. E a vida continua, sem grandes desvios, porque não nos desviamos de nossas pequenas covardias, ora uns, ora outros. E o primeiro beijo fica engavetado na memória, junto com o primeiro gol feito depois dele.



Algoz

1 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Muito rico, em sentimento e na expressão desse sentimento - quantas passagens para serem repetidas e lembradas.

Coragem.

janeiro 23, 2008 11:10 AM  

Postar um comentário

<< Home