Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, janeiro 29, 2008

A primeira viagem

E assim foi: eu já tinha meus quase trinta anos. A vida corria tanto que tardou a me ocorrer: era minha primeira vez. Foi quando a velocidade tocou o limite da lei: apertei o botão que fez tocar aquele Metallica áureo – que poucas porém boas vezes dividi com aquele amigo mais caro pelas estradas da vida –; o vento em meu braço abriu em meu rosto um sorriso descuidado de si mesmo; vi toda a paisagem passando pelos meus olhos, do lado esquerdo e... do lado direito: ninguém! Eu estava na estrada, no limite de velocidade – e poderia dizer que era mais um limite de minha própria vida –, e sozinho ao volante. Era minha primeira vez. E se ao meu lado não havia pra quem sorrir ou com quem cantar, era mesmo um momento muito meu. E aquela solidão, acompanhada das memórias de outras viagens e das pessoas que se tinham quedado pelas estradas por que passei, aquela solidão era o sorriso desconhecedor do que cada curva trazia depois de si. Eu sabia, apenas, que havia muitos radares no caminho. E que depois da última curva haveria uma amiga, querida o suficiente pra me botar na estrada sozinho pela primeira vez na vida, e querida o bastante pra me fazer visitá-la depois de quase dois anos sem contato algum.
Quando a serra começa, não há radares. Então se respeita o limite do bom senso, que deve ser algo entre os dois extremos: o dos chatos caminhões, que descem a cem metros por minuto; e o das graciosas marias-sem-vergonha, que sobem mil vezes mais rápido. Há naquela estrada uma área pra que parem motoristas quaisquer por quaisquer motivos. Há talvez alguns brinquedos, desses de parquinhos de diversão, mas coisa rústica. E a vista do vale que se forma feito fiorde nas entranhas da serra, e alguns dos fios de água que descem pela encosta pra formar aquele rio abismalmente distante que parece o raquítico fiorde que minha imaginação fez pensar. Ali eu parei. Porque estava sozinho, e fazia meu próprio tempo. Porque precisava mesmo ligar pra minha amiga pedindo seu endereço exato e alguma explicação de como lá chegar. Porque nem oito horas ainda o dia tinha, e isso me fazia tão necessitado de esticar as pernas quanto disposto a me frear a aventura pra um momento de apreciação despreocupada. E porque – ali, então, parado, me lembrei – estive naquele mesmo lugar meses antes, e tinha com meus amigos uma foto em que aparecíamos, os três, olhando o vale que era apenas uma grande névoa branca a cobri-lo. E como o dia se ia abrindo limpo, tentei tirar uma foto do mesmo ângulo daquela outra, eu sozinho pisando o mesmo pedaço de chão em que antes me acompanhavam aquelas pessoas queridas e então já tão distantes nessa terra gigante, mas a quem meus sentimentos traziam perto, abraçadas pelo abraço maior que é aquele que nem precisamos dar. E não sentia tristeza nisso: meu sorriso saía incautamente honesto, tanto com o momento quanto com a memória. E certamente, pra esses que eu levava comigo, essa imagem de mim mesmo era mais bonita e mais condizente com o justo por que eu passava. Voltei ao carro, segui caminho.
Encontrei com alguma facilidade a simples e boa casa. O abraço bom preservado, tomamos café, conversamos amenidades. Ela logo me perguntou se eu estava cansado, ao que resolveu me levar a uma praia sem dificuldades de acesso. Então ali estávamos, sentados, a três ou quatro metros daquela água doce que logo adiante se encontraria com as ondas do mar. E as amenidades se foram transmutando em assuntos, em pensamentos, em trocas de experiências. Sua avó havia falecido no ano anterior, assim como o meu avô. Ela era assim e assado, ele falava isso e aquilo, ela tinha tantos anos, ele também. No final das contas, ficou pra mim a idéia de que esses dois velhos – ranzinzas e ao mesmo tempo moleques – teriam sido um bom par nessa vida: de amigos que se ofendessem com sangue nos olhos, ou de vizinhos que trocassem farpas com aquela admiração mútua que nem o último leito faria admitir.
Então voltamos, almoçamos. Cerveja vai, cerveja vem, a tarde foi. E depois, noite alta já, nós dois na parte aberta da edícula da casa, o quintal ali, céu nublado, vento frio, e a imagem do carinho que fica em mim guardada como tesouro sem chave nem cadeado: uma latinha e dois copos; um silêncio e duas pessoas; aquele momento e seus múltiplos futuros, que esse exato carinho permite – apesar de todo o resto das pessoas do mundo e das coisas da vida e das idéias do tempo – encontrarem-se em tranqüilidade, ainda que já velhos, mas como dois velhos que viveram e morreram quase tudo, e que sabem o carinho mútuo como o último remédio.


Algoz

1 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Texto bonito da porra. Um dos mais, provavelmente. Começando com a genial aproximação feita entre o correr de "correria" e o "ocorrer, segue até o fim encorpado com muito lirismo.
(Quando o entendimento e a experiência tornam-se carinho, algo de muito bonito está acontecendo. Eu acho.)

Besos...

janeiro 31, 2008 6:17 PM  

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