Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, janeiro 15, 2008

A primeira despedida

E apesar da inicial intensidade e posterior insegurança com que aquelas mulheres passaram em nossas vidas naquele ano – experiências e memórias gravadas com indelével triste-beleza que teriam eventualmente nos sugado pra vala comum do grande e amorfo sofrimento humano, caso não tivéssemos certa paciência dentro da doença que nos acometia (eu sempre mais entregue) –, apesar da força e importância que fizemos com que elas tivessem no grande divisor de águas que aquele ano foi, dezembro se despedia mostrando que delas e tudo que delas trazíamos – entre engasgados, resolvidos, incertos – sobrávamos nós. Vivos, um tanto mais serenos, e presentes.
Na tranqüila quase-deserta praia estávamos, acompanhados de poucas porém queridas pessoas. Sem pensar nas possíveis escolhas não feitas, sem lamentar os possíveis arrependimentos dos feitos, estávamos ali, as imensidões do mar e do céu ao quase-alcance de nossos pés e de nossas mentes.
E se naquela mesma ilha, a uma ou duas praias de distância, estava aquela graça de menina por quem os ponteiros de meus pensamentos se perdiam do relógio do mundo, não pensei. Ela não estava onde não queria estar, e tenho que naquelas horas – em que o ano vinha chegando e passando o bastão pro outro e diminuindo o ritmo até que o outro se quedasse irreversivelmente só na pista da vida –, a carga de desejo em mim era muito baixa. O tempo apenas passava, e era bom estar ali. Nem melhor, nem pior, do que poderia ser [o que não era].
E quase sem trocarmos palavra, e quase sem trocarmos sorriso, quase sem nos olharmos sequer, a simbológica virada do ano tinha acontecido e estávamos de volta à casa que em onze pessoas dividíamos. Ainda em quase-silêncio, nos despedimos naquele início de madrugada. E cada um, com seus próprios pensamentos, se retirou pra seu próprio canto, pra seu próprio sono.
O primeiro sol do ano começava a arder a pele quando a casa começou a se movimentar. A água sempre fria tirando os copos da pia e as remelas dos olhos e o hálito das bocas e passando o café e esfriando as cabeças de corpos suados pela noite sempre morna, algumas frutas e pães quebrando o último álcool do ano que virou história. O sol subindo. E nosso silêncio maior levemente suspenso (o meu sempre mais) pelas amenidades trocadas com quase todos os outros naquela dança de mãos e copos e pratos e cigarros e garrafas comum a qualquer manhã como aquela, em qualquer dia de qualquer ano. Era apenas mais um parágrafo de mais um capítulo do grande livro da vida, que por boa sorte nos colocava juntos naquelas linhas, apesar das vírgulas que nós mesmos trazíamos – com mútuo respeito – a nos separar aqui e ali.
De volta à cidade grande, as obrigações voltaram a espaçar nosso convívio. Mas não duraria mais do que dois dias. Naquele sábado à noite nos encontramos em sua festa de despedida, e na noite seguinte lá estávamos, no aeroporto, fumando talvez nosso último cigarro em comunhão, ao lado de uma moça bonita – que nos forçou leve-resignada troca de palavra –, e a dez minutos do paredão indiferente atrás do qual se vão pessoas queridas – talvez pra nunca mais.
Estamos, enfim, a poucos metros do atroz funcionário do aeroporto que insiste em deixar passar aqueles que nosso ego não quer que passem – mas a quem queremos bem, acima de qualquer coisa.
E enquanto outros abraços antecedem o meu, vejo dois senhores – uniformizados para pilotar – se aproximando do tal funcionário – que certamente pra eles não é tão atroz assim. Caminham juntos e trocam muito provavelmente palavras amigáveis, pois sorriem certa tranqüilidade que me faz pensar ser o troféu que apenas aqueles que já se despediram demais na vida – e de suas próprias vidas – podem alcançar. E que poucos alcançam. Apresentam seus papéis, passam. E me deixam meditando se, independentemente de mulher e filhos, conseguiremos caminhar a vida pra sermos qualquer coisa parecida com Braga e seus amigos na praia.
Seu passo em minha direção me traz de volta à realidade. Um abraço forte, com poucas – não necessárias – palavras, e lá se vai, com suas duas malas e seu cartão de embarque, meu amigo. Mostra o papel e passa, olha rapidamente pra trás, ergue sorrindo quase amarelo a mão quase estática, adeus.
E segue a vida.


Algoz