Confraternização

(Na geladeira)

quinta-feira, março 27, 2008

Versos livres do amor cativo

Sempre voltas depois que vais
Voltas quieto e sempre sozinho.
Nunca sabes teu próprio caminho
Mas sempre voltas ao mesmo cais.

És tão tolo e tão mesquinho
Que não te fartas de ser mais.
E mesmo quando queres paz
Fazes guerra de qualquer carinho

Na busca doente por qualquer beleza
Sempre te entregas à solitária dor.
Não aceitas que é da natureza
A impermanência do cobertor.
E soluças em teu lençol, apesar da certeza
De teres nascido pra passar frio, Amor.


Algoz

quarta-feira, março 26, 2008

Tarja preta

Saia curta não pode? Continuar amigo da fulana não pode? Decote não pode? Falar com a ex no telefone não pode? Sair sozinha não pode? Usar perfume pra ir trabalhar não pode? Aula de dança não pode? Festa da firma não pode? Beber cerveja não pode? Fazer teatro não pode? Intercâmbio não pode? Boteco depois da aula não pode?
É... Tem gente que acha que o amor não é droga.


Algoz

terça-feira, março 25, 2008

Reabilitação

Conversa de mesa de bar sempre puxa outra pela memória. Outro dia me lembrei daquele camarada cervejeiro que aqui e ali dividia garrafas e confissões amorosas comigo. Nunca freqüentamos a vida um do outro, mas vinha desde a primeira semana do primeiro ano de faculdade que nos encontrávamos pelos bares. E foi numa daquelas noites que, eu no balcão, ele jogando sinuca, compartilhamos olhos arregalados pela moça com calor que passava rumo ao banheiro. Depois tecemos alguns românticos comentários sobre ela e suas quatro amigas, e bastou. Daquela noite pra frente, se os dois apareciam no mesmo bar, no final da noite tinha sempre pelo menos uma dúzia de garrafas secas e um par de mulheres dissecadas. Esse cara era um colecionador de relacionamentos, tinha saia no verbo pra mesa de boteco que não acabava mais. Eu tentava acompanhar, mas virava e mexia eu mal falava, só bebia, ele contava e eu só ouvia.

***

A primeira namorada do [] – nem me lembro se ele usava nome ou apelido – tinha sofrido horrores com ele. Ciumento que era, proibia à moça certas roupas, certas amizades, certos lugares... Chegava mesmo a persegui-la, quando desconfiava que a incauta pudesse subtrair sua honra de macho. Alguns anos de inferno que transformaram a menina numa sádica, e botaram por fim alguma sensatez na cuca do fulano. Do fim do relacionamento, nem preciso dizer. (Foi feio.)
Então ele se envolveu com uma veterana, logo no começo da primeira faculdade que fez. Essa já começou falando que não tinha relacionamento que não fosse aberto, queimava velas no peito dele, tinha amigas pra lá de íntimas, e outras tantas novidades que ele acabou por aceitar e, algumas delas, até a incorporar. No final, a moderninha acabou se apaixonando por ele, parece que queria até se casar. E ele, que ela própria tinha transformado num folião do mais aplicado, era agora perseguido. (Dessa história eu me lembro de ter rido muito... e a cada detalhe sórdido eu ria mais e mais... e eram muitos detalhes sórdidos, muitos...) E viveu mais um inferninho de alguns longos meses.
Depois ficou alguns anos se metendo em confusão. Quando as coisas iam mal, e ele queria sumir, não conseguia... tinha sempre uma justificativa pra si mesmo pra continuar sofrendo dentro de relacionamentos doentes que sempre acabavam mal. Quando as coisas iam bem, e ele se dedicava até com certo desapego, era a moça que – talvez assustada – sumia do mapa sem dar satisfação. (E cada uma dessas histórias, ali na mesa do bar, me fazia rir tanto que eu dificilmente perdia minha sobriedade, tantas e tamanhas lições que eu me pegava sempre a absorver.)

***

Fazia já uns três anos que ele não cruzava o meu caminho. Me viu sozinho numa mesa de canto, sorriu. Já veio com um copo e uma garrafa. Mas não tinha garrafa na mesa. Antes que ele falasse, eu disse que tinha voltado pra cachaça, que era como eu tinha começado a beber. Acabei indo pegar um copo, afinal fazia tempo que não bebíamos juntos. Então, como se nunca tivéssemos saído do bar, ele começou a contar...

Que conheceu uma moça bonita, inteligente, lá do curso dele na faculdade. Se apaixonaram. (Nesse dia eu já comecei o assunto rindo, imaginando quanto álcool não levaria pra ele me deixar a par de três anos de aventuras.) A fulana era mulher de policial. (Eu cheguei a chorar de tanto rir de umas passagens absurdas das loucuras que ele tinha cometido.)

Muitas garrafas depois, quando ele terminou de contar, eu perguntei, rindo cordialmente:
– Cara, você não muda... Já pensou em clínica de reabilitação?
– Hein?
– Clínica de reabilitação.
Parece que nesse momento o álcool subiu a temperatura, e aqueles três anos de distância me transformaram num intrometido irresponsável. Ele disse, levantando a voz:
– Você que é alcoólatra e eu que preciso de reabilitação?!
Fiquei quieto. Eu sabia mais detalhes doentios dos relacionamentos dele do que ele mesmo imaginava, tão rápido em sofrer por um se mergulhando em outro.
– Hein?! Você já foi pra reabilitação?!
Continuei quieto, talvez ele se acalmasse.
Lançou mão de alguns moralismos, jogou trinta reais na mesa e saiu. Pra nunca mais.


Algoz

segunda-feira, março 24, 2008

Doce*

Desenhos e gestos
Minúncias, de um capricho...
E emanares:
Os sentidos desesperam
É tanto! Um quase desfalece

O que fazer com lembrança?

Saudade de sentir?
Deleite de carinho?
Devaneios de ternura?

Carícias...
Brincar de cheirar
De tão perto que a gente imagina a pessoa
E depois se aconchega
Todo corpo é moleza de dengo

Suave
Querida

Havia um silêncio ali


Bruno*

quinta-feira, março 20, 2008

Esboço em soneto

Na busca doente pelo que querem,
Respeitam e zelam por seus relógios.
E são responsáveis em seus trabalhos,
Que fazem sem gosto por se manterem.

Tudo que não têm cobiçam seus olhos,
E juram por Deus que tudo merecem.
E sabem que um dia todos falecem,
Mas querem pra si seus próprios espólios.

São todos heróis do mundo caduco,
Se afirmam guerreiros batalhadores.
Mas batem punheta feito um eunuco,

Pois não há tutu que pague suas dores.
Precisam de filhos a quem sustentar,
E de algum amor que possam comprar.


Algoz

quarta-feira, março 19, 2008

De troféus e carências...

Não estará mais perdido aquele que, alcançada certa inércia social, se queda em tal estabilidade... enquanto aquele tido por perdido brinca de viver pelos caminhos sempre obstruídos pelos "achados"?


Algoz

terça-feira, março 18, 2008

Interpretação

Puxei a cadeira, ela se sentou. Perguntei o que queria.
– A cerveja pode escolher, eu só quero copo americano.
Fui, voltei, me sentei.
– To começando a acreditar na teoria da bola de neve... Eu devia ter ido no aniversário da [], o [] ia e eu perdi a oportunidade... e aquela pata da [] deve ter aproveitado... Agora parece que tudo tá errado: o trabalho, o curso, eu mesma... Não quero acreditar na bola de neve, mas essa semana fiquei supersticiosa... você acha que eu devo acreditar?... o que você acha?
– Explica isso aí...
– Sei lá, depois que a gente faz ou deixa de fazer uma coisa e acha que foi cagada, parece que tudo começa a dar errado, e não pára mais.
– Sei... Lembra da []?
– A louca?
– Isso... não te contei como eu conheci a Pi?
– Sua mulher?
– A própria.
– Nunca... como foi?

***

Eu namorava uma moça bonita, inteligente, gostosa, e mais velha. (É da natureza dos homens achar que mulher mais velha é um tipo de troféu que se exibe aos amigos como prova de uma virilidade maior.) Eu, todo pimpão, namorava essa moça. Mês vai, mês vem, fazia já quase um ano que estávamos juntos. Eu curtindo a vida, ela ficando mais velha. Matemática simples: uma mulher com plano de casamento mais um moleque louco pra curtir a vida, igual a um término conflituoso de relacionamento. Isso pra pintar a coisa com uma equação reduzida. Foi mais quase um ano de inferno. Choradeiras, gritarias, telefonemas intermináveis, intervenções noturnas, tanto tempo de semear perdido... uma grande tristeza. É sorte que nós, seres humanos, tenhamos a capacidade de aprender com nossos próprios erros.
Uma vez, naquele tempo áureo que são os primeiros meses de alguns relacionamentos – porque há alguns, poucos, é verdade, que já começam mal –, fomos a uma festa de amigos dela. Coisa pequena, não éramos quinze no apartamento. Uma moça cacheada me chamou a atenção. Trocamos alguns olhares. De repente ela estava ao meu lado, conversava comigo. Eram amenidades, minha então namorada de frente comigo, conversando com um amigo em comum. Estávamos todos engraçadinhos, o álcool começava a subir de seu dia cheio de trabalho. No dia seguinte havia um telefone novo na agenda do meu aparelho. E parece que ninguém sabia disso, pois nunca foi assunto. E o tempo passou. O próprio inferno daquele relacionamento já tinha passado fazia tempo, eu tinha de puxar pela memória pra me lembrar daquela moça bonita, inteligente, gostosa e mais velha que me infernizou por quase um ano depois das coisas tão bacanas que tínhamos vivido juntos.
Era um começo de noite quente, eu tomava uma cerveja sozinho no balcão de um bar – meus amigos sempre se horrorizaram desse hábito esparso que eu tinha, diziam que não era saudável, e alguns até que era perigoso. Alguém tocou meu ombro, e era ela. Demorei tanto pra reconhecer que ela acabou por se re-apresentar. Disse seu nome e contou da festa no apartamento do []. Eu continuava sorrindo minha ignorância. Então ela disse que eu era namorado da [], e contou da troca de telefones na festa. Então me lembrei. Confirmei com ela que seus cabelos eram compridos na época, e finalmente me ocorreu que naquela noite ela tinha sido apresentada com um apelido, e não com aquele nome que agora me dizia. E ela confirmou: Pi. Então se sentou, pediu um copo. E alguns anos depois estávamos morando juntos – ou casados, como diziam nossos pais aos amigos.

***

– Caraca!
– Pois é... o mundo dá voltas... dizem.
– E por que Pi, que mal pergunte?
– Pi, de Pinochet.
– Ai, ai, ai! E aí?
– Quando a gente se reencontrou tinha acontecido tanta coisa na vida dela... que ela já tava bem mais tranqüila...
– É, até assustei, pra mim ela é bem sossegada mesmo...
– É, acho que eu mereço... depois de tudo que eu passei...
– Peraí!... você parece que sempre procurou, vai...
– É...
– Agora... o que tem isso com a minha teoria da bola de neve?
– Sei lá... é você que tem que saber... Vou lá pegar mais uma...


Algoz

quinta-feira, março 13, 2008

Comunhão

Era doce o seu beijo,
cheio de frescor.
E o meu, travesso,
quase todo fervor.

Mas era bom me entregar
Como aluno dedicado
Àquele desconhecido
[tão diferente, tão delicado
E com carinho me esforçar
Pra ser dele eterno aprendiz
[eternamente ignorante.

Já o seu sexo era agitado,
como prova a ser cumprida.
E o meu, cheio de manha,
ignorava o tempo da vida.

Mas era bom te ver fechar
[os olhos
Em carinhoso suspiro.
Como quem se entrega
[ao tempo,
Como quem se entrega
[à valsa,
Como quem entrega tudo.

Era bom.

Ainda me lembro
de nossa última vez.
Nos olhávamos, era noite,
[Em silêncio.
Então você disse:
Tinha me esquecido...
que a gente conversava
[só com os olhos.

Ainda me lembro...

E mais tarde, suada,
(Nossas peles naquela
comunhão inaudita)
Não podendo, ainda, lançar-se
[faniquita, ao relógio-ventilador
[que a si mesma impunha,
você repetiu, como mantra triste:
Tinha me esquecido...
de como era bom.


Algoz

quarta-feira, março 12, 2008

De um pouco de vida

Talvez não seja bacana ter de se esforçar por lembrar-se do que a si seja caro – mesmo porque o que é caro não necessita, em condições normais, de esforço pra ser lembrado. Como vivemos em tempos de ponta-cabeça, de pés pelas mãos, de corre-corre, a lembrança do que seja caro tornou-se agenda, e a apreciação do caro um acessório. Donde, costumeiramente necessitamos de algum esforço pra estarmos em companhia seleta, pra bebermos sossegadamente, mesmo pra fazermos silêncio, ou pra falarmos bobagens sem algum tipo de sentinela moderna que nos devolva às crueldades do mundo sem nexo em que forçosamente vivemos. Mas deve ser razoável, quando se pode, um buquê de rosas pra mãe de uma amiga – e marcar outro encontro pra um bom vinho –, um cd de músicas pra um bom amigo – com hora marcada pra uma cerveja –, um telefonema despreocupado pra alguém que esteja longe, um beijo no pai, um colo na mãe, uma loucura qualquer pra se encontrar por três minutos com alguém que se queira bem. Se pra isso forem necessários esforços – cada um de um tipo –, então deve ser razoável entregar-se a eles. Talvez.


Algoz

Atravessando o Rio*

É triste olhar para a natureza e ver algo que não ela mesma.
O rio tem a força da correnteza, da maré que enche, dos animais; não tem idéias, consciência, não considera o tempo que o torna único a cada instante, não tem um fundo de verdades - senão a desconhecida e temerosa profundidade de um fundo oceânico.
Para atravessar o rio, pouco importa a razão do sujeito e de nada serve todo o amor que leva consigo.
Para atravessar o rio, é preciso ter pernas e braços; fôlego e coragem.
A margem segura e triste que deixamos ao partir; a margem que é preciso alcançar do outro lado; quando da terceira margem as avistamos, com o corpo já exausto de tanto nadar, e a dúvida entre qual delas escolher, sem saber se nossos braços e pernas conseguirão nos levar de volta à terra firme, só uma certeza permite a vida: o movimento, a ação do nosso corpo, a vontade quase involuntária de existir.
Corpo, coragem e força.

Bruno*

terça-feira, março 11, 2008

A rosa e o chafariz

A rosa estava a mais de metro e meio do solo. Dei bom dia e saí.
O dia foi desimportante. (Sempre há coisas importantes num dia, mas na cidade grande costumeiramente não temos tempo de vê-las. E se as vemos costumeiramente não apreciamos, e se as apreciamos costumeiramente estamos cansados já o suficiente pra não fazê-lo bem, e se o fazemos bem é costumeiramente sem tempo suficiente. Então calculo que tenha havido coisas importantes naquele meu dia, mas de nada me lembro com muita ênfase – afora a gorda e rápida chuva do começo da tarde.) Então o dia não foi, na verdade, desimportante. É que depois que a noite subiu, quando a soma de todas as coisas me punha com uma latinha na mão, encontrei – quando já me ia embora – um motivo ímpar pra sorrir: então o dia se fez todo um esquecimento, caindo por isso nessa desimportância que talvez nem tenha sido, mas que não se controla – e que assim seja! –: um abraço. Um suave e forte e entregue abraço.
Um abraço. Sorriso, suspiro. Pausa. Saímos do barulho da aglomeração. Sentamos num banco, conversamos as amenidades dos dias, bebendo devagar. E era bom. Fomos beber mais, mudamos de lugar, conversamos mais. A hora passou, caminhamos. No caminho, paramos e compramos bombons. A noite era um calor ameno que se revezava com a brisa típica que aquelas praças todas juntas propiciavam – isso pra ela. A mim a noite tocava fresca, sem quase alteração. O chocolate, levemente derretido, a fez contente. Então eu sorri, contente de estar ali, caminhando ao lado dela. Numa das praças havia um espelho d’água. Foi pena o chafariz estar desligado, a noite estava gostosa. Abracei-a com minhas mãos cruzando seu colo, meu queixo em seu ombro, e toda a ternura que a ela destinava – e que era todo eu –, ameaçando em brincadeira pisar com ela aqueles pouquíssimos centímetros de água que jaziam a ausência da chuva de si mesmos, que o chafariz, quieto, não criava. E disse como tinha sido bom, pra mim, tê-la encontrado naquele dia. Então a virei e me deixei estar abraçado com ela um pouco mais. E nesse momento em que palavras dizem menos do que em todas as outras passagens, eu sentia pouco além da gratidão cósmica por estar naquele lugar, naquele momento, com aquela pessoa, envolto naquele abraço. Então saiu da minha boca algo com a palavra casa. E antes que eu me reprimisse por ter emitido som, senti a lágrima de emoção que corria pra dentro e que tinha, com pouco de minha consciência, pronunciado a tal frase. Então apenas sorri, com a dor não-triste pela constante finitude das horas [belas].
Seguimos caminho. Eu, tomado do meu eu-criança-feliz mais conscientemente inconseqüente – sabido que a hora da despedida chegava e tentando viver aquele momento com toda a intensidade que meus pêlos pediam –, abracei-a pelas costelas e comecei a girar nós dois. Ela pedia, rindo, que eu parasse. Mas que importava mais do que aquilo? Acabamos por cair na grama. Respiramos, levantamos, voltamos a caminhar. E sentados, à espera do tempo, segurei e beijei sua mão. E com palavras poucas e simples e tranqüilas, me coloquei uma vez mais à disposição dela, como quem oferta e se retira antes de ver o primeiro movimento facial.
É que não nos víamos havia quase três meses. É que não havia motivo por que esperar.
Havia apenas o meu todo carinho. Tão lapidado por tudo que, se não cabia em mim, sabia – pouco mais ou menos – onde parar e sorrir, à distância, essa tristeza não-dorida de recolher-se a si mesmo.
Há coisas que nenhuma explicação explica.
A rosa tinha crescido visivelmente. Dei boa noite e me fui deitar.


Algoz