Confraternização

(Na geladeira)

quinta-feira, setembro 27, 2007

Ruas e janelas

Manda um beijo pra ele
[que é uma alma linda
[Foi Deus quem mandou.

Assim dizia uma senhora
[pra outra senhora que ia
[se despedindo da que falava.

Enquanto um carro atropelava
[o corpo da tal alma que não sabia
[que aquela seria a chegada sua hora.

Mas eu não cogitava nisso
[pensando nas notas fiscais
[que Ofício emitir mandou.


Algoz

Buraco*

(Uma demonstração de amizade)


Um buraco. Não é a mais elegante das representações, mas é a que melhor descreve esse lugar: um buraco. Constam nele duas camas, dois guarda-roupas; as paredes são de compensado, e para acender a luz é preciso subir na cadeira e rosquear a lâmpada. O banheiro mais próximo é o detentor do chuveiro com água quente, mas prefiro ter um pouco mais de trabalho e subir as escadas que levam ao chuveiro de água fria. Este é um banheiro de casa cantiga, espaçoso; é como pertencer a outra época – e, além disso, possui uma aura toda melancólica que eu achei justo lhe atribuir.

Nesse pequeno quarto; ou melhor, nesse buraco, vivemos eu e um grande e velho amigo. Sabemos que essa não é a moradia mais digna do mundo – ora a achamos muito feia e ingrata, ora nos parece muito rústica e heróica, como um épico da humildade, ou um bom rock´n´roll. Mas, nos sentimos certos e até mesmo contentes, pois sabemos da importância de estarmos novamente juntos. Imagino que nos sentimos assim, tão confortáveis com a simples presença um do outro, por compartilharmos tacitamente as marguras que nos trouxeram até esse... buraco, destino de muito amor frustrado e alguma coragem para enfrentar o tempo. Buraco onde, ainda assim, a música embala o sono e o bom amigo é um irmão.




Bruno*

quarta-feira, setembro 26, 2007

Mole

Mas nem os deuses sabem que tolas representações – de si mesmas e de todos os possíveis seres que as habitam e/ou freqüentam – não utilizarão as praias – cada uma delas – como motivações práticas que as levem a mudar, radical e inexplicavelmente, a ondulação de suas águas: de um ser pra outro sentinte; de um dia pro fim de tarde seguinte; de uma noite pra um ser mentinte.
A vida é uma praia sem uma vila de pescadores que minimamente a desvendassem. E onde bóiam restos de corpos. Corpos aqueles que feito lagartixas se regeneram em outras praias. Mas há poucos sérios casos em que as partes deixadas se demoram demais em decompor-se – quando chegam a tal. Às vezes as águas – sempre criteriosamente ignorantes – levam partes ou outras pros cantos, onde eventualmente se enroscam nas pedras abaixo da superfície, e nem os supostos inexistentes pescadores que a assistem – à praia – as enxergam – as partes. Quando a maré recua, por vezes algumas partes de alguns corpos ficam acima da superfície. Mas se num momento de recuo se desprendem e as águas – com suas ingênuas sempre-certas direções – as levam – as partes – pra uma pedra ainda mais profunda... há de chegar o dia... É forçoso: nunca estamos tão longe dele quanto em nossos piores tédios imaginamos.


Algoz

terça-feira, setembro 25, 2007

Santos

Fazia dez anos que eu não ia a Florianópolis. Uma vez mais era carnaval. Eu, pra variar, fui o último a perceber. Quase me surpreendia: essa mulher tinha lentamente entrado na minha vida: eu não fazendo parte da dela. Essa mulher chegou ao ponto de me fazer todo sim, nas pouquíssimas vezes em que se permitiu entregar-se a mim. Ela estava de namorado antigo. E ele iria trabalhar. Então ele em mim confiava – desconfiadíssimo. Então – e para todo o sempre – eu não dava a ele motivos pra desconfianças, e nem a ele desrespeitava – e assim me mantenho, serenamente – por tê-la deixado entrar na minha daquele jeito: sentimentos não controlamos – ao menos até certo ponto. Então ela iria pra casa de uma amiga em comum. Então ele deu a ela carta branca – como precisasse algum ser humano da permissão de qualquer outro, pra qualquer coisa – pra que dormisse lá, por conveniência. Então fiquei feliz, porque eu mesmo não precisava de permissão qualquer pra em qualquer travesseiro repousar, e aquela mulher era o único ser em quem eu deseja pousar naquela era. Ainda me lembro: foi nessa noite que aprendi: nada há que, feito com a máxima entrega possível – independentemente de resultar o melhor possível ou não –, supere um mal-entendido, quando o mal-entendido foi doentiomente criado e atropeladamente resolvido pela força e pela aceitação da tal força: o telefone tocou. E vi, uma vez mais, que era mau. Era mau estarmos ali: eu honestamente todo ela, ela metademente o próprio tradicionalíssimo relacionamento. Talvez seja parvo de minha parte, mas ainda não entendi na vida essas demonstrações de qualquer coisa via impropérios e vozerias. Tão triste: mal eram oito da manhã. Triste mesmo: descansávamos, juntos, nossos corpos. Tristíssimo: era a delícia de se compartilhar em sossego o intimíssimo momento do sono. Mas a vozeria é sempre maior. Resultado: foi-se embora. E os motivos que tinha pra se chatear comigo vieram a de fato se mostrar tão tolos, mas tão tolos. E o dia de carinho que começaria foi assassinado, às oito da manhã, pelo amor, que vinha, feroz, pelos cabos onde – acima de qualquer coisa ou pessoa ou outro lugar – se criou, se fez forte e se sustenta: irrevogavelmente.
O tempo passou, e todos nós contribuímos, cada qual com suas quantidades e qualidades de praticidade, pro desfecho – dolorosamente silenciado a travesseiro – do gostoso gosto de tudo aquilo que virou um pesado nada.
Qualquer grande tristeza de qualquer insignificante vida, assim como os genocídios, são inenarráveis. Não houve amigo, álcool ou briga de casais que me consolasse do que mais tarde sucedeu: a lua comprovou – uma vez mais – ser apenas um astro. E tudo, em última instância, fazia dó.
Quatro anos antes, quando certa feita fui demitido de uma grande empresa, mal sabia quão simples viria a ser uma demissão perto de um desamor: meu ex-chefe não gostava de mim, e eu gostava menos ainda dele. E foi de um dia pro outro. E a grande tristeza de tudo foi: eu estava em Florianópolis. O desamor foi muito mais petrificante: se fazendo aos poucos, escondendo seus olhares aos poucos, contraindo seus sorrisos aos poucos, guardando seus beijos aos poucos, pra se escusar aos poucos de tudo aquilo que em mim tinha construído. Parece que conseguiu – ao menos a si mesmo – se escusar. Cada louco com sua mania, cada maníaco com sua crença. Eu havia, novamente – mas dessa inenarravelmente – sido o escolhido. Demorei a me encolher, mas com meu habitual esquisito humor, fui aos poucos... um dia todos chegamos lá.
E só há uma lição disso tudo: algumas praias de Florianópolis são maravilhosas. Mas ainda há belíssimas praias, em outras ilhas também – menos vorazmente frequentadas e, por tal, mais sensíveis às poluições e delas críticas – onde se possa mergulhar em harmonia sem ser tragado e afogado e desovado, como sempre pode acontecer numa praia de rebentação, que se escusa do que faz, por ser sua natureza – quando não a forma como se moldou, ao longo do tempo.
Acabou que todos, sem exceção, foram demitidos.
Todos.


Algoz

quinta-feira, setembro 20, 2007

João

Digam que fui gozar
dos conhecimentos
[de um velho sábio
Que é das pouquíssimas
[íssimas, íssimas, íssimas
pessoas que expandem
[a porra do Universo
Como quem estupra
um buraco negro
[e sai, sorrindo
[do outro lado
[que é o mesmo.

Digam que depois fui beber
E que depois ainda fui amar

[Sem culpa ou partido de nada
Que não aquele conhecimento
[intangível
Que não aquele vinho bom
Que não aquele sentimento triste-quase
de dolorido até, de tão leve-belo
[do gozo que faz até lágrimas.


Algoz

quarta-feira, setembro 19, 2007

Desencanto

Que tenha dentes fortes quem não soube farejar uma traição.

(Mas, o estômago onde ontem foi morar um encantador coelhinho está hoje sendo observado por um grupo de hienas. Basta deixar estar.)

Dentes fortes, bom. [Auto]focinheira, melhor.


Algoz

terça-feira, setembro 18, 2007

Florianópolis

Fazia seis anos que eu não ia a Florianópolis. Uma vez mais era carnaval. Eu, pra variar, fui o último convidado. Não me incomodava: esse amigo que me chamou sabia que eu funcionava desse jeito: sendo chamado na última hora. Esse amigo nunca ouviu de mim um não, nas não poucas vezes em que me convidou pra viajar. Ele estava de namorada nova. Então ela chamou um casal de amigos. E então ele chamou um casal amigo dele, pra compensar os amigos eternamente solteiros – eu incluso – que uma vez mais – eu depois de quatro anos – o acompanhariam na folia – que já então não era tanta folia assim: por ele estar casadinho; e por nós, os solteiros, já não sermos mais tão moleques: o maior terror que tocávamos eram dois violões – não eu – e muita gelatina de vodka a partir das vinte e duas horas. Ainda me lembro: foi nessa viagem que aprendi: vodka, quando consumida nas horas e doses certas, e com alguma atividade das glândulas sudoríparas, espanta insetos que picam em geral. E vimos, uma vez mais, que era bom. Era bom estar ali: todos nós – à exceção de um dos casais, que, tendo seus dois oponentes nascido bem, passava um terço de seus dias cuidando de seus corpos –, todos nós éramos muito dignos: trabalhávamos feito escravos na selva de pedra: nos sentíamos merecedores de estar ali, e ali nos amolecia os ímpetos; e a vontade de voltar, ao menos naquele momento inicial de forte contraste, era zero. Que não soe a pré conceito: o casal que primava pela beleza passou o feriado inteiro brigando: em suas corridas de quarenta quilômetros pela ilha; em nossos almoços descontraídos; em nosso sol, em nossa lua; no preparo de nossa gelatina, no posto de gasolina; na hora de dormir e na hora de acordar. Talvez seja parvo de minha parte, mas ainda não entendi na vida essas demonstrações de afeto via impropérios e vozerias e (quase) físicas agressões. Mas, eu que tenha paciência! Um dia eu chego lá...
Chegou o último dia. Estávamos em três carros. Eu resumo: sobramos eu e Dedê no carro do bom-cristão casal. Saíram cedo pra corridinha de quarenta quilômetros habitual. Não voltavam. O casal de amigos da namorada levou um casal que lá em Floripa se formou. Não voltavam. Meu amigo e sua namorada levaram um solteiro médico amigo, que precisava se apresentar na quarta às dez da noite. Não voltavam. Eu e Dedê sentados na calçada, sem violão, sem vodka, sem uma mulher que nos fosse de colírio, e os malditos não voltavam. Mal entramos de volta no continente, já o sol se despedia de nós, deixando pra Lua o observar – se ela observasse qualquer desamor – de nosso desalento em estar ali, dentro do carro de pessoas de comportamentos indignos, atrasadíssimos e prontos pra toda sorte de estresse advindo da lentidão que certamente pegaríamos por conta das inúteis discussões daquele infeliz casal que chegava, em última instância, a fazer dó.
Chegamos em São Paulo às sete da tardia manhã, não sem antes termos quase morrido por mais de uma vez, fruto podre da macheza de nosso piloto, que não deixava outro encostar a mão no volante de seu possante um ponto zero rebaixado filmado e cromado: dormia dirigindo como quem dorme assistindo televisão. Mas não perdia sua macheza – aparentemente só a entregaria, e pessoalmente, a Lúcifer. Mas era um bom horário pra se entrar na cidade má: foram apenas duas horas até a casa onde então eu morava. Naquela época eu entrava no trabalho às oito e meia: cheguei às dez e meia. Era quinta-feira de cinzas. Às onze meu chefe me chamou. Era um sujeito tolo, tolo. Mas de uma tolice, eu juro... Em sua sala, e na presença das duas boníssimas pessoas que profissionalmente ficavam entre eu e ele, o mosca-morta disse:
– Você sabe, a empresa está sofrendo uma reestruturação. Então a diretoria determinou que nós cortássemos uma supervisora e dois vendedores. Você foi um dos escolhidos.
Fiquei incrédulo: havia pelo menos cinco funcionários que mereciam aquela promoção muito mais do que eu, e pelo menos mais cinco – somados aos outros cinco – que a queriam. Olhei minhas duas supervisoras, uma delas sorria – a que deixava a empresa comigo! – com seu habitual esquisito humor.
E só há uma lição disso tudo: eu devia ter ficado em Florianópolis até o final de semana. Até porque é possível que a demissão me chegasse por fofoca – talvez oficial – e eu realmente me deixasse ficar por lá ainda mais: e muito provavelmente não seria eu quem sou.


Algoz

Nublado*

Tem dias em que simplesmente acordamos mais dispostos a sofrer.
E então o céu nublado nos serve de desculpa;
e inventamos uma dor verdadeira para justificar nosso drama.
Mas, pode ser que aconteça uma estiagem no meio da tarde.
E então a luz do sol nos parece a piedade de um deus qualquer;
e nos esquecemos por um instante de nossa vida enferma,
enquanto o mundo, lentamente, volta a ser uma tragédia
[indiferente...

Bruno*

quinta-feira, setembro 13, 2007

Menos das mesmas

Quando se é obrigado a escrever
[e por si mesmo,
Mas as idéias parece
[que não existem

Basta pensar que se é obrigado
[também a viver
E que os males da vida
[sempre persistem
E as pessoas do mundo
[nunca desistem
[quase.

Pra se constatar que é tudo
[de fato
uma grande bobagem.


Algoz

quarta-feira, setembro 12, 2007

Mais das mesmas bobagens

Dormir é, muita vez, o suicídio contrariado e momentâneo do superego, que se debate muita vez com partes do corpo que se recusam a executar tarefas, como o próprio cérebro, em cujos caminhos fatias de histórias se perdem dolorosa mas resignadamente, deixando muita vez um texto com buracos no miolo, inexplicavelmente – pra quem houver de ler... e pra quem dormiu também.
Mas os coletivos persistem, com suas persistentes famílias, que não desistem de executar as tarefas – sempre dolorosamente perdidas, fatiadas e esburacadíssimas – da resignada História, que parece ter dormido demais em seu controverso inexplicável caminho.
Vistas assim as coisas, que bobagem não será um textinho pífio qualquer, e que maior bobagem ainda não será o cogitar na suposta queda de qualidade de uma bobagem escrita por mãos que apenas dançavam, languidamente, enquanto um tolo superego lutava por fazê-las eretas, feito um homem que, muito alcoolizado, tenta em vão uma ereção?


Algoz

Terça-feira

Era o último ônibus de uma terça-feira qualquer. E tendo eu entrado no coletivo em um dos primeiros pontos, era o único passageiro ainda. Pensava nos afazeres atrasados e nas desfeitas sempre pontuais que de tanto acontecerem hão de ainda um dia me fazer crer ter qualquer coisa aprendido. O motorista, tão homérica ou biblicamente heróico quanto eu, confessava ao cobrador sentado no primeiro assento seus grandiosos feitos quotidianos. Tinha uma filha que, sendo desrespeitosa para com os pais, tinha um marido desrespeitoso para consigo mesma. O pai nosso simpático motorista a havia alertado no sentido de conhecer melhor a pessoa com quem haveria de dividir as amenidades da vida. Em vão. Certa feita aparentemente recente , havia sido obrigado palavras dele a castigar a pobre-diaba com uma cintada. E agora se sentia mal com toda aquela delicada situação que se instaurava em seu delicado quase-lar. Mas a cintada havia sido merecida, e nisso ia o mundo a girar eu pensando no desamor, nas bobagens que todos optamos por fazer, na insignificância de tudo e de todos. E o motorista se transformou pra mim num corpo que gesticulava e falava sem emitir som que pelos meus ouvidos entrassem.
Descendo do já segundo ônibus, a quarta-feira dos homens comendo silenciosa e deserta a minha terça que não acabaria tão cedo , dois skatistas conversavam ao lado da pista. Um dizia ao outro que a realidade não era apenas o namoro, por isso mais isso mais aquilo, blá blá blá. Continuei meu caminho. Já de longe ouvi duas garaglhadas, uma alta e outra menos. Pensei: Devem ter chegado à conclusão última de qualquer filosofia: as deliciosas obscenidades da vida.
Chegando em casa fiz um telefonema, jantei um quase café da manhã a madrugada engolia as pálpebras da terça-feira de meus olhos , tomei uma coisinha qualquer... e dormi.


Algoz

quinta-feira, setembro 06, 2007

Correria

POEMA A UM GOSTOSO TROPEÇO

O mar me chama, eu vou.
O passado não clama, passou.
Vai ter trânsito, eu já sabia
[que o sabiá sabia assobiá.

Bem-te-vis ipês conversas
Essas amenidades...

Pé no asfalto...

[Rumo à doce morte
[de Dorival.


Algoz

quarta-feira, setembro 05, 2007

Partilha parva

Enquanto nossos pensamentos divagam, e muitas vezes temos a (in)felicidade de tangenciar argumentos interessantíssimos que aparentemente nem cogitados haviam sido no começo da exata frase que levou à tal tangente, não é de se admirar ceticamente estruturando que muitas vezes nos admiremos com o vigor de argumentos cujo suposto ápice de força já tenhamos supostamente absorvido. E nesses momentos percebemos o valor infindável dada a eterna miséria do que se chama a evolução humana de se conversar com também os ouvidos. Pois se não há conselho nem consolo, não por isso devemos ignorar o que podemos com suposta relevância dizer, e menos ainda o que podemos ouvir. Há momentos em que uma frase bem ouvida se faz bálsamo e quiçá também armadura. E se precisamos de exemplos práticos pra tentar fazer descer de forma menos pesada essa ladainha toda, fiquemos com uma frase apenas, que por alguns de nós certamente já passou, mas que pode vir a ser de alguma serventia a quem quiser que assim seja. E que ela sirva do que houver de servir, pra qualquer um e em qualquer momento e/ou lugar. Ei-la: não adianta tentar responder a uma pergunta que não foi feita.


Algoz

Natureza vs. Cultura*

Foi num dia qualquer, uma tarde perdida no meio da semana, quando todos que a visitam, mesmo sem serem convidados, estavam esquecidos dela. Foi ali que pude ver a praia e seu trabalho de ventar a areia para longe, castigando, com a maresia, a parte da cidade que dela se aproximou demais. As casas continuavam ali, teimosas, fingindo não sofrer, impassíveis, com sua frieza de concreto, mas pude ver claramente que não passava de aparência, que a praia, com sua persistência e força, conseguia expulsar dali aquela parcela de humanidade.
E aquilo tudo acontecia ali: pássaros, maré, sol prosseguindo com seu ciclo infindável os afazeres da terra que o homem, com sua imensa estupidez, tenta destruir em nome do seu egoísmo. Eu estava ali, diante de um perfeito retrato da Natureza versus Cultura, e torcia francamente para que a Natureza ganhasse e espantasse pra longe toda a mesquinhez daquelas casas e pessoas que nela costumavam habitar, mas, principalmente, que espantasse a mesquinhez da minha humanidade. Pensei: "A honesta busca pela Natureza nada mais é do que a repulsa do indivíduo a todo tipo de sordidez humana", e pareceu-me bom esse entendimento, enquanto eu assitia, orgulhoso de estar ali, a praia e seu digníssimo trabalho.

Bruno*

terça-feira, setembro 04, 2007

Quotidianidades idiotas

Na varanda homens riem enquanto dizem besteiras quaisquer uns pros outros, dos outros que são eles mesmos. Na rua ouvem-se apenas sons de palavras e risos altos, vindos lá do alto de onde os homens conversam. Mas na rua ninguém quer de fato ouvir o que os homens têm a gritar lá de cima. A vida acontece na rua, não lá.

***

Bem-te-vi desce da árvore, pousa numa lixeira. Em proporção, seria algo como estar no quinto andar – ou, em língua de Bem-te-vi (se eles tivessem uma, assim, humana), no quinto do Inferno. Olha pra baixo e vê duas pombas bicando migalhas no chão. Olha pras pombas, pescoço de lado, curioso – eu acho. Segundos de reflexão depois, desce ao térreo. Fica a coisa de meio metro das pombas, analisando o território e a situação. As pombas fazem de conta que não é com elas. Bem-te-vi brincando de pomba, parece aquela fábula... da pombinha feia? Que era Bem-te-vi e sabia cantar e sabia voar e estava no meio de pombas se pensando uma pomba? Mas na rua ninguém queria de fato ouvir um Bem-te-vi, nem saber os porquês de ele querer brincar de pomba, ainda que sem porquês. Bem-te-vi na calçada é pomba. E ponto. Os ipês florescendo, e a vida acontecendo do lado de dentro do concreto, onde os feitos grandiosos são decididos para, então, serem concretizados do lado de fora, por sobre os cadáveres dos ipês e dos Bem-te-vis. Mas as pombas continuam. Apesar de um ou outro louco que pare no meio da rua do mundo pra observar, simplesmente, um último ipê ou um último Bem-te-vi que se dêem o trabalho de brincar com janelas espelhadas e portões eletrônicos e seguranças armados e câmeras de vigilância e/ou pombas.

***

Mas os homens que riem e gritam e se divertem, o fazem com o pouco – pouquíssimo, muitas vezes – que têm. São os moradores do longe que ali constroem os lados de dentro onde morarão ou trabalharão os outros que nem perceberão a onipresença das pombas quando todos os Bem-te-vis estiverem mortos.


Algoz