Confraternização

(Na geladeira)

quarta-feira, abril 30, 2008

Reino*

Meu reino por um colo
No silêncio mais profundo...
De uma companhia, idéia
Que nos guia, distraídos
Sem pensar, sem importar
O que parece motivo
Quando é só aqui
O passar desse estar
Tão amoado, amoadinho
No corriqueiro
Carente, quase azul
- A música tocando
Ao som da chuva -
Trabalhando preocupações
Rogando ao tempo
Que não haja futuro
O presente é a morte!
E não o receio
Imaginado e sofrido
Como um reino de bobagens...


Bruno*

terça-feira, abril 29, 2008

Questões

Minhas questões não tem resposta...por isso são desnecessárias

quinta-feira, abril 24, 2008

Regalo balcânico

Se eu te disser adeus
Meu amor
Por favor
Não interpreta

Tem tempo demais
Que o que ficou pra trás
Fica atrás de mim

Sem causar muita dor
Mas sem muito sabor
Apenas permanece

Ainda sei teus lábios
Como nenhum larápio
Há de roubar

E ainda sei o teu cheiro
Como nenhum cavalheiro
Há de apreciar

E no castanho dos teus olhos
Sisudos ou langorosos
Ninguém como eu mergulhará

Não será portanto falácia
Quando eu romper esse laço
E te der esse quase triste adeus

É apenas que essa valsa
Não a acompanha meu passo
No tempo que o Tempo escolheu

Vou deitar esse ataúde
E seguir o meu caminho
Pobre de rima e sozinho

E com todo o meu carinho
Vou brindar à tua saúde
No solitário copo de vinho

Não interpreta, por favor
Enquanto te dão presentes
Que eu, já de muito ausente
Te dê adeus, meu amor


Algoz

quarta-feira, abril 23, 2008

De um pouco de amor

Sim, não amamos a pessoa-objeto-de-nosso-amor, mas nos contentamos – por vezes mais que outras – com a quantidade de quesitos e/ou com a qualidade deles... com que esse alguém se encaixa nos conceitos que a sociedade nos fez ter por nossos. E dentro disso vemos nosso sofrimento amoroso como algo genuíno e honesto: quando queremos a qualquer preço encaixar alguém na gaveta da imagem do que seja nossa outra metade – quando somos inteiros irremediavelmente incompletos; ou quando alguém que julgamos se encaixar nesse impossível nos dá as costas. [(Ou ainda quando vemos nossa tolice em permanecer amorosamente com uma pessoa que nos faz questionar – em quantidade e qualidade excessivas – o amor que por ela sentimos – leia-se: a quantidade e a qualidade com que esse alguém preenche nossas necessidades conceituais pra que tal relacionamento seja benéfico: o que chamamos de felicidade.) Quando vemos a tolice disso tudo e permanecemos numa situação de morte-em-vida, culpando o Universo e/ou justificando nossa toleima com aquele item do conjunto de conceitos que esse alguém consegue preencher – quando... valha-nos!... qualquer um é capaz de preencher razoavelmente um ou dois conceitos de qualquer outro.] Mas a exata consciente permanência num estado de infelicidade amorosa é também uma forma de amor – nesse exato sentido do encaixe humano em conceitos sociais –, mas de um amor que anula e amarga quem o sente; de um amor mesquinho pelas próprias lágrimas e pelos próprios cantos escuros; e em última instância, de um amor cruel com que justificar as inúmeras formas de violência comportamental.


Algoz

terça-feira, abril 22, 2008

Pedras ao copo

Era outono e fez frio e choveu. Me lembro disso porque tinha virado a noite nublada trabalhando, a lua era cheia e de vez em quando brilhava forte as pedras no quintal. Vi o dia chegando pela lâmpada do quarto brincando de estrela enquanto a janela, ainda fechada, já clareava, devagar mas impiedosa, o quarto. Meus olhos ardiam, meu estômago doía, a água não parava de passar café. Pela hora do almoço me deitei e dormi por três horas. Voltei ao cansaço. Era outono e fez frio e choveu. E por isso me lembro que foi nesse dia. E o dia passou.
Quando a noite voltou e eu não tinha mais cabeça pra tarefas, escorreguei a bunda no assento, apoiei a nuca na cadeira, estiquei as pernas e os pés. Era bom ter sobrevivido. E estar fazendo despretensiosos vinte graus de ângulo com o chão, olhando o pernilongo preso ao teto pela teia inabitada. Pus aquele bom e velho fone de ouvido de estúdio, daqueles que o mundo acaba e a gente morre sem saber, com a música fluindo na gente feito a última injeção. Então a seleção de jazz começou a tocar. Fechei os olhos. Ah!, aqueles saudosos fones de estúdio... Eu sentia meus dedos tocando aquele piano, e então sentia minhas mãos tocando aquele corpo. E pensava num botão que sentisse a ansiedade de desabrochar pra sentir o calor do sol a acender em suas pétalas o desejo da abelha que lhe viria acariciar. E pensava numa lâmpada apagada que sentisse a ansiedade de ser acesa pra observar, em silêncio, dois corpos que se amassem inauditamente no chão. Então pensei também num grão de areia do deserto que se sentisse desesperadamente ansioso por uma gota d’água que viesse do céu a lhe lambiscar, enquanto uma criança arteira, longe dali, olhasse pela janela a neve caindo na rua e sentisse uma ansiedade insuportável pela primavera.
Pensei então numa moça – esse pensamento vinha desde o começo da música, como pano de fundo de todas as outras imagens –, numa moça que estivesse, sozinha em casa, depois de um dia de trabalho, esperando por mim. Esperando pelo meu virar de chave, pelos meus pés descalços combinando com a roupa social que eu usaria só quando não precisasse. Pensei nessa moça que esperasse pela garrafa de vinho que minhas mãos pousassem na mesa pra então apertá-la cheias de desejo pela cintura. Nessa moça que esperasse pelo meu sorriso pra me beijar, e pelo meu olhar pra entregar seu corpo ao meu. A moça que esperasse pelo pêssego com que eu lhe daria bom dia pela manhã...
Então a primeira música acabou e não quis ouvir outra, como quem quer fixar uma imagem. Abri os olhos, e o pernilongo continuava lá. Tomei uma dose do uísque que aquela canção pedia, e fui deitar. Fazia frio e a chuva voltou. Então o telefone tocou. E uma voz de menina, vinda da boca de uma mulher, embalou os últimos pensamentos que tive naquele longo dia de outono.


Algoz

Encontro

Mestre...como posso me encontrar?

Compreenda seu olhar...ele é vós querendo sair e dizendo-te como...

quarta-feira, abril 16, 2008

Mais uma chamada?

Porque as estações definem os lugares e aqueles com quem nos encontramos. Que definem o vinho que bebemos, a canção que embala aquele olhar que nossa companhia nunca mais vai ter de outro alguém. Olhar esse que pode voltar pra embalar nosso embalar do filho que veio de outro alguém, em outro lugar, em outra estação. Daí que a viagem não feita ontem põe outras pedras em nosso caminho, outras flores, outros vinhos, mais outras pessoas, menos mais outras. E muda o sabor de nossa comida, a força do nosso café, o amargor de nossa boca, a doçura de nosso beijo. Tudo é aquele beijo... e aquele olhar... que estão sempre conosco e com ninguém mais. Apenas com o tempo, que só é certo pra si mesmo.


Algoz

terça-feira, abril 15, 2008

Bonsoir

Começava a primavera em Paris. Um escritor de seu renome caminhava à beira do rio, no sentido da correnteza. Tinha deixado as cortinas abertas, pra acordar cedo caso o céu viesse azul. Acordou com as paredes do quarto em chamas, num amarelo pudim que o fez sorrir pensando... na história que contaria à charmosa senhorita que, com olhos de caçadora e movimentos de caça, fazia do café da manhã uma delícia completa e preguiçosa. Pediria a ela uma omelete dupla com aquele queijo francês que ela mesma tinha recomendado quatro dias antes, quando ele fazia seu primeiro café da manhã na cidade, ele com sua inalterável timidez, ela com aquele olhar de curiosidade reprimida pelo crachá de funcionária do hotel onde ele se hospedava. Mas hoje, com aquele sorridente argumento das paredes o acordando amarelas, talvez conseguisse transparecer não só seu interesse pela moça – tão evidente em seus sorrisos cheios de falta de jeito –, mas também sua intenção em demonstrá-lo, tão quase tardio já – ele teria apenas mais dois cafés da manhã depois daquele, antes de deixar a cidade. Ela, sorridente...
– As paredes do meu quarto são amarelas... adoro amarelo.
O homem quase engasgou, sua respeitosa barba parecendo alguma precocidade que tivesse acometido um menino dos seus dezesseis anos. A moça, levemente constrangida – pela situação e por sua ocasional impossibilidade – perguntou se o rapaz precisava de ajuda. Ao que ele se saiu bem, até...
– Perdão, me emocionei além do costume...
A moça, tendo visto a humildade com que o estrangeiro flertava consigo, usou da experiência toda que tinha adquirido ao longo dos anos trabalhando com o público: fez que ia à cozinha buscar algo que amenizasse o engasgue de nosso patrício, e voltou com um guardanapo borrado com um nome e um número. O rapaz, ainda tossindo, entrou no jogo de discrição e apenas agradeceu, como que a uma boa profissional que tivesse acabado de cumprir bem com suas requeridas funções.

***

Andava por uma primaveril parisiense beira de rio um escritor. Andava sorrindo.

***

Fim de tarde na Torre. Uma moça dos seus trinta anos, acompanhada de sua fofura de mãe, olha de baixo pra cima a imensa estrutura. Comenta sobre a gigante delicadeza daquilo, mas não fala apenas com sua mãe. Um seu conterrâneo passava, sorrindo quase que uma cãibra – eram já mais de seis da tarde, e o pobre-diabo nem almoçado tinha, caminhava pela cidade desde as oito e quarenta da manhã, sentando-se apenas nos bancos dos boulevards e das praças pra que seu corpo se aproveitasse de seus pensamentos e sorrisos mais delongados pra descansar um pouco. Volta então à realidade o rapaz e, sem que sua habitual timidez tivesse tempo de forçar seus passos a continuarem o caminho, pára ao lado da filha que com sua óbvia mãe conversa e, sem pestanejar, se lança...
– Se eu morrer em Paris e me mandarem de volta pra ser enterrado lá, assombro as próximas vinte gerações da minha própria família.

***

Era um dia de outono... tinha garoado fino o dia todo, e agora era noite e fazia frio. Uma mensagem, vinda da Europa, dizia...
– Acabo de jantar com um escritor. Patrício nosso. Um charme de timidez. Quem é que vai querer um francês depois disso? Ah!, se eu arrumasse um desse pra mim... casava, constituía família, e se ele quisesse ficar por aqui, nunca que eu voltava. Pode se preparar pra vir me visitar...


Algoz

sábado, abril 12, 2008

Nordeste*

Há no horizonte um continente de nuvens.
Almoçamos tainha, peixe em posta,
macaxeira que derrete na boca,
conhecemos os donos e filhos do bar,
somos amigos cordiais,
percorremos pequenas estradas do interior:
o Nordeste é um sentimento
de palavras, costumes, paisagens.
Há no fundo uma gravidade ontológica
a permear o suspiro profundo,
o sincero sorriso de canto,
a tranquilidade de estar.
Há no fundo uma tristeza que não é triste
- que por falta de nome é vontade de amar -
Conhecer muitos lugares, percorrer distâncias
Em busca de nada, uma liberdade congênita
Ter descanso de rede, balançar à meia luz - casa limpa.
Mas ter também regaço de colo, de carinhos
convulsivos, loucos, de união absoluta e impossível.
Aquietar em bom sentir
Sabendo o interessante, desistir dos porquês:
será o dessentir o estado ideal de existir?
Os prazeres não explicam,
o vazio, a natureza,
pois a consciência há de continuar incomodando
mesmo que a vida seja um óbvio
e insignificante caminho para a morte.
Quem sabe quando a paciência for
um verdadeiro gesto natural
certeza de realidade e prática
Quem sabe assim
Fechar os olhos
A vida passando
A vida passando...

Bruno*

quinta-feira, abril 10, 2008

A vida se faz...

Das noites que viraram noitadas
Das idéias que viraram piadas
Dos amores que viraram maçadas
Dos amigos que viraram moradas


Algoz

quarta-feira, abril 09, 2008

Quadrado besta

Nelson disse que é preciso ler pouco e reler muito.
Pensemos um quadrado com ler, reler, pouco e muito. Cruzando, teríamos quatro possibilidades: ler pouco e reler pouco; ler pouco e reler muito; ler muito e reler pouco; ler muito e reler muito.
Há quem talvez pense que essa praticamente impossível quarta possibilidade vá surtir algum efeito na qualidade crítica de leitura de quem praticá-la.
Mas nem ficando com Nelson. É preciso mais. E esse mais não se mede, apesar de ter quem pense assim. Como repórter que fica por vinte anos na beira do gramado, e acha que por estar ali há vinte anos, faz perguntas relevantes.


Algoz

terça-feira, abril 08, 2008

Sinuca

– Você não se importaria se eu te apagasse dos meus contatos, certo?
Era sábado, eu tomava um café preto depois do almoço. Li a pergunta uma, duas, três vezes. E por mais que eu quisesse não acreditar, e ainda que esfregasse os olhos, a pergunta estava lá, na tela do computador, sem cumprimento prévio, apenas ela mesma, a pergunta, seca e dura, me olhando triste e ressentida, esperando por resposta. Até quando seria assim? Até quando aquele nosso silêncio se revezaria de tempos em tempos com questionamentos incômodos sobre sentimentos e práticas que não se explicam? A pergunta estava ali, esperando...
Fui sincero.
Até quando minhas respostas, somadas à nossa distância – física e mental –, se transformariam em mais perguntas?

***

– Por que não podemos ficar perto um do outro?
Nisso eu estava sentado na cama, algumas horas mais tarde, a luz do banheiro acesa, pés descalços pra lá e pra cá. E uma vez mais, dessa no telefone celular, eu olhava a mensagem que pedia resposta antes mesmo de se apresentar. Então me ocorreu algo, admirando aquele corpo moreno vindo e indo em toalhas brancas. Escrevi...
– Talvez porque minha vida siga caminhos que nem eu mesmo acompanhe.
Enviei a mensagem. Deitei o aparelho no criado ao lado da cama, me vesti. Os pés descalços se calçaram, fomos pro bar. Do outro lado do balcão, aquele bom e velho amigo já esperava com duas latinhas. Conversamos um pouco, jogamos sinuca, beliscamos qualquer coisa. Os pés antes descalços acompanhavam como se ainda descalços estivessem: em cúmplice sintonia. Já os três bebiam cachaça, e trocavam histórias e idéias, o tempo passando gostoso, a vida seguindo seus próprios passos.
A resposta virando tréplica...

***

– E não seria assim a vida de todos? Só resta coragem pra mudar de rota ou pegar um desvio. (...) O caminho vai ser sempre desconhecido mesmo.
No criado, desamparado, o celular segurava sozinho o peso do silêncio que seguia aquelas mensagens.
No bar, descontraída, a noite ia com sua música pouco a pouco trançando pernas.
Eu queria saber dizer e silenciar as palavras certas e nas horas certas. Mas sabia que nenhumas dessas coisas existiam, e que eu mesmo, se havia algo certo na vida ou no mundo, eu mesmo era das coisas mais erradas. E dizendo que era errado, talvez conseguisse colocar as coisas em lugar menos pior. Mas não queria magoar alguém a quem queria tão bem. Não queria dizer a verdade nua e crua, me assinar volúvel e vadio. Não queria explicar com todas as letras que meu corpo não se quedaria perto dela senão trazendo, de quando em quando, um amargor de que ela poderia se poupar, se eu permanecesse fisicamente longe. Minha vida era um caminhar sempre incógnito, do balcão pra mesa de sinuca, e da mesa pro banheiro, do banheiro pro balcão, pro caixa, pra rua, pra cama qualquer... Não queria ter de dizer que tinha tanta coragem pra mudar de rota e pegar desvios, que já não vivia num caminho desconhecido, mas apenas por atalhos. E não queria ter de explicar esses atalhos, tão conscientemente escolhidos em detrimento do desconhecido alheio, tão socialmente escusos, tão resignadamente não-aceitos por muitos dos poucos que me sabiam e me queriam bem. Não queria tanto. Queria apenas ser um pouco dono de mim mesmo, com todas as amarras que a própria vida já me obrigava a carregar. E que eu me chateasse com isso, paciência. Não queria era chateá-la por ser aquilo. Aquilo que eu era e por muito ainda não mudaria.

***

Então nos enroscávamos no balcão, e ríamos junto com nosso amigo das piadas que ficavam todas cada vez mais engraçadas, e perdíamos dicção enquanto mais bebíamos. O celular, descansando em silêncio, dava tempo às perguntas de se descansarem também. Logo todos os contatos se apagaram do lado de fora da porta, e do lado de dentro tudo virou contato, pés novamente descalços, nuvens rolando, luzes se acendendo e se apagando, cortinas dançando devagar, corpos adormecendo, o céu enfim clareando...
O dia voltou e a vida continuava lá, mais cansada pra uns, mais dolorida pra outros, lágrimas e sorrisos em seus devidos lugares. Alguns erros certos de si mesmos, algumas certezas talvez ainda tateando seus caminhos. E um silêncio torcendo, com carinho, pra ter – se fazendo um caminho desconhecido – se feito resposta.


Algoz

A Linguagem da Dor*

A linguagem da dor vem desde muito cedo, desde muito antes. Doenças, quedas, machucados e cortes. O grande amor.
E então todo sofrimento é um único sentir, emaranhado de dores, fiel companhia para olhos que sempre enxergarão algum raro encanto com resignação.
E então qualquer palavra será um lamento. E ao lado de cada pensamento estará uma feliz descrença, certeza de fim.
Uma ternura fadada à melancolia.
Uma consciência cansada, de lânguidas tristezas.
É certo que a lamúria é um visco corrosivo - mas a felicidade estúpida também.
E como dor não se divide, não se explica, o desespero, o choro surdo e as blafêmias ajudam no convalescer, enquanto a espera se torna um penoso alento...

Como ter paz onde há sangue?

Porque a dor tem sua linguagem, seus modos de ser, e interpretá-la é esse mortificante desafio, de quem não pode escapar a uma severa punição, sem culpados ou responsáveis.
Há quem acredite haver apenas a dor.
Para outros, não é preciso acreditar...


Bruno*

quinta-feira, abril 03, 2008

Rascunho em construção

PARTE I

No dia em que foi derrubado
um presidente fanfarrão,
Nascia, com bom peso
[apesar do pequeno coração,
um menino franzino
[de vida sem rima.

Depois, no dia do assassinato
daqueles quatro estudantes
O menino iniciou-se
Na vida amorosa

Então, novamente no dia
da queda daquele presidente,
nosso menino tocou seu maior:
Beijou pela primeira vez
[aquela que seria
seu grande e eterno amor.

Depois, no dia da fundação
daquele importante instituto
[cheio de vacinas e cobras
O grande amor despediu
nosso serelepe menino,

Que caiu na vida,
num dia qualquer,
maior que os outros.


Algoz

quarta-feira, abril 02, 2008

Paradigmas

Há perguntas que não devem ser feitas.
Quando o trabalho esgota um cidadão, e ele chega mesmo a se sonhar escalpelando e comendo ratos crus, a manhã seguinte o põe de volta ao trabalho com a cara de quem escalpelou e comeu ratos crus. Então vai um seu colega e pede – por vezes inocente – por alguma palavra acerca do que se passa. Se o cidadão narra – de preferência com detalhes sórdidos – o ocorrido, é plausível que ao outro o estômago se embrulhe, e que a mente se melindre. Se três dias depois o cidadão aparece sorrindo as orelhas, vem o colega se redimir – para si mesmo – com uma pergunta cuja resposta será obviamente boa. Mas o que é, de fato, pra cada um, bom? Vai o cidadão e começa a narrar... que a mulher flertou consigo, chamou uma amiga, e de repente ele estava acorrentado, lambendo... Chega! Lá vai o colega de novo pro banheiro.
Como temos estômago fraco, em geral. Não sabemos que o mundo é vasto, não sabemos que o amor é droga, não sabemos da inutilidade das paixões, não sabemos ser mais importantes do que a televisão que assistimos. Não sabemos perguntar, nem sabemos ouvir certas respostas. Não sabemos enxergar. E nisso tantos de nós fomos crucificados, tantos de nós fomos enforcados, tantos de nós fomos guilhotinados, tantos de nós fomos queimados, tantos de nós fomos apartados, tantos de nós fomos violentados, tantos de nós fomos fuzilados, tantos de nós fomos jogados nas valas comuns e nos cemitérios clandestinos da História. Porque não sabemos senão reproduzir discursos cegos e surdos de outros que eram ainda mais cegos e surdos do que nós.


Algoz

terça-feira, abril 01, 2008

Sintagmas

Um ponto de ônibus também é, por vezes, uma espécie de mesa de bar.
Não eram oito da madrugada ainda, e lá estava eu. O ônibus, sempre pontual o suficiente pra permitir que certos cidadãos se entreguem à terrível arte de puxar assunto com estranhos, cumpria muito bem naquela manhã essa sua inerente função social. E se não é necessário um mote pra que se comece uma conversa, quem dirá quando há um – pequeno que seja. E havia. O ponto, nessa época, era na frente do portão de uma casa. E nessa manhã triste – porque eu estava bastante infeliz com o que fazia por sustento – a dona da tal casinha estava, logo cedo, lavando seu quintal. E fazia isso com uma economia de água que me faria parecer irônico ao narrá-la. Mas era verdade. Com um pote daqueles de sorvete – que deve ter lá seus dois litros – ela ia jogando água, esfregando, e jogando água pra escorrer o sabão. Não deve ter usado dez daqueles. Pra quem tinha uma vizinha que empurrava folhas caídas com uma mangueira, aquela senhora era quase a personificação do conceito de ecologicamente correto. E foi durante tal processo que uma senhora, também à espera do coletivo, resolveu se falar...
– Só [] mesmo... (A senhora da casa era imigrante do [], ou descendente de.)
– Porque brasileiro mesmo não se preocupa em economizar água.
Porque só essa outra cultura pensava assim e assado e blá, blá, blá. Quando o ônibus enfim chegou, era tarde: já ela tinha emitido opiniões o suficiente pra me fazer entrar já cansado no coletivo.
Me fiz distante dela, evitando assim o caso de ela querer continuar o assunto com alguém que estivesse já a par de sua incrível visão crítica de mundo. Consegui, alguns pontos depois, um assento. Adormeci. Acordei no ponto final, desci, caminhei meu quinhão, peguei o outro ônibus. E nesse, que não viajava comigo por menos de uma hora, acabei não encontrando assento. Logo, ao invés de me entregar ao sono, acabei mergulhando em meus pensamentos...

***

E não conseguindo me esquecer da tal convicta senhora, que atribuía aos [] a qualidade do cuidado com a economia de água, passei então a cogitar no que imaginaria ela de outras questões. Imaginaria que no fundo da casa da senhora que lavava o quintal haveria um lindo jardim colorido e bem cuidado? E que todos os [] fariam assim também? De repente uma ficha me quis cair na cuca. Pensaria ela que todo brasileiro é desleixado? (Se sim, ela certamente se excluiria disso.) Ah!, o ser humano e suas generalizações convictas... Pensaria ela que todo [] segue a religião []? Que todo [] usa []? Que todo homem de bigode é machista? Que todo russo bebe vodka? Que o partido X é bom e o Y é mau? Que toda [] é puta? Que todo [] é gay? Que todo poeta é vagabundo?
É que eu tinha uma vizinha, nessa mesma época, que também era [] (como a senhora que lavava o quintal) – e participava das festas da colônia e tudo, e os três filhos não podiam namorar quem não fosse [] como eles. E essa minha vizinha, toda fechada dentro dos costumes de seus antepassados, foi quem, mais ou menos um ano antes dessa manhã do quintal lavado a balde de sorvete, solicitou à prefeitura que arrancasse a árvore que ficava, na calçada, entre a casa dela e a nossa. A árvore que, além de atrapalhar a visão do muro pichado do outro lado da rua, ainda tinha o péssimo hábito de atrair os bem-te-vis e as maritacas todos os dias, em vários horários. A árvore que impunha sombra às duas garagens, quando o dia se fazia quase insuportavelmente quente. Maldita seja! (Era certamente o que ela vinha pensando já havia algum tempo.) E a prefeitura, muito solícita pra coisas importantes, mandou um seu caminhão de uma sua secretaria que na época se chamava algo como “Conservação de áreas ajardinadas”, pouco mais ou muito menos do que isso. E aqueles mais de dez homens – três assassinos e o resto de testemunhas – atenderam ao nobre pedido de minha vizinha [].
Então pensei em como eu seria tolo de me considerar, se poeta fosse, um vagabundo. Porque seria mesmo possível que eu me forçasse a sê-lo, e que forçasse a realidade em torno de mim a girar-me com esses olhos. E ainda, se assim fosse, mais certo é que eu não tivesse estado naquele ponto, naquela manhã, pra pensar essa bobagem toda. Porque é possível que a tal senhora nem fosse tão convicta. Talvez fosse apenas uma senhora carente de afeto que, numa manhã quase fria, tenha se sentido impelida a desabafar sua triste condição humana... e que esse desabafo – de algo muito maior e intangível – tenha saído em forma de um protestinho tolo e inútil – equivocado, até – que ela mesma talvez nunca antes tivesse cogitado fazer, mas que ali, naquela manhã triste, tenha lhe calhado dizer.

***

E de tanto pensar perdi o ponto, e cheguei vinte minutos atrasado. Naquele mesmo mês fui finalmente demitido. E virei uma espécie de poeta.


Algoz