Confraternização

(Na geladeira)

sábado, junho 28, 2008

Passarinho*

Muitos dos que lêem devem ter tido, quando criança, um relacionamento afetivo com árvore, se pendurando nos galhos - aos gritos das mães -, colhendo frutinhas, construindo casinhas e brinquedos. Acredito que minha geração seja provavelmente a última a contar com uma dessas histórias de árvore. E o mesmo acontece com as ruas de terra e com as brincadeiras em rua de terra, a pipa, o peão: jogos que não interessam mais a geração dos apartamentos e video-games.
O que não tive foi a oportunidade de caçar passarinhos. Não pela caça, obviamente, que é atividade muito maldosa, mas pelo prazer do contato com esses bichinhos encantadores, tê-los na palma da mão, conhecer suas variadíssimas espécies e cores e cantos. Não é a coisa mais bonitinha um passarinho andando, aos pulinhos?
Lembro do meu pai contando histórias de passarinho: investidas, negócios, cuidados. Um de seus maiores arrependimentos, segundo ele, era ter matado alguns passarinhos. Por isso, sempre que penso na palavra remorso me lembro de passarinhos. Aprendi a nunca permitir esse sentimento, e a ser bem quietinho, como quem espreita passarinho.
Já pensei em criar um calopsita em casa, mas o cativeiro é sempre uma judiação, e felizmente minha preguiça é sempre maior do que planos tão audázes. Já pensei também na hipótese de me tornar um passarinhologista, espécie de biólogo-fotógrafo amador, para estudar e saber tudo sobre passarinhos - idéia que, ao que tudo indica, terá o mesmo fim das outras.
Passarinhos são tão bonitinhos que dá até para conversar sobre eles sem ter a preocupação de dizer nada mais além de sua beleza; sem precisar fazer nenhuma consideração importante e séria sobre a vida. Só a palavra passarinho já é bonita: passarinho. Arte boa é assim, existe quase que naturalmente, um encanto em si, que surge sem a mão e a razão bruta do homem. Basta concentração e atenção para avistar uma, como a um passarinho. Com empenho e sorte, pode até ser que um atravesse a janela e entre em sua casa, pouse em sua cama, abra o seu livro favorito e repouse tranquílo - com todo o esplendor de sua plumagem à mostra -, cantando algumas levezas em palavras, como num belíssimo e epifânico vôo emoldurado por uma pintura que nasce diante de seus olhos emocionados.


Bruno*

sexta-feira, junho 27, 2008

A Modernidade e o Jambolão*


Memórias, da infância ou de toda vida, costumam ser um bom mote para crônicas. Estava a ler uma dessas, que me causou lembranças e vontades de uma do gênero.
Reminiscências são alimento para muito pensamento.
E o que me ocorreu de contar foi sobre o pé de jambolão do meu bairro, da minha infância. A árvore era enorme, corpulenta, pertencia a mais de um terreno e seus galhos cobriam boa parte da rua. As frutinhas eram até gostosas, mas manchavam mãos, roupas, casas e calçadas, o que era considerado um problema. Não era uma árvore habitável para molecagens, como as divertidas pitangueiras e o chapéu-de-sol, mas era bom ouvir os passarinhos que no final da tarde vinham e faziam uma enorme festa, gorjeando altíssimo. Mas, como não poderia deixar de ser, o tempo passou, trazendo a modernidade e os negócios, e a árvore precisou ser cortada para dar lugar ao estacionamento de um super-mercado. Soube que no dia houveram manifestações de desaprovação, uma senhora chorou, e eu mesmo quando vi aquele vazio deixado me senti muito triste, indignado. A modernidade sempre chega; chegou para aquela árvore e chega para nós, embora choremos e relutemos contra suas moto-serras e asfaltos, contra suas recentes opiniões que vêm incomodar nosso mundinho já certo em seu erro de idéias bem acomodadas.
Um pouco antes, nessa mesma época, trocaram os antigos paralelepípedos de concreto - que segundo uns ajudavam a dar o ar de cidade praiana - pelo asfalto de pixe, muito mais adequado à modernidade. Acompanhei a transformação com a companhia de familiares e moradores, que me contavam sobre inúmeros acidentes de trânsito que estavam acontecendo. Reparei que a cidade sofria se adaptando à tranformação do asfalto, que trouxera uma outra velocidade muito mais acelarada à cidade acostumada ao antigo rítmo dos paralelepípedos e lombadas; agora os pedestres e ciclistas - vale a pena citar que a bicicleta é o principal meio de transporte da cidadezinha - tinham que se acostumar e prestar mais atenção com os carros que agora voavam baixo. Voar é coisa da modernidade. E na modernidade tudo é muito rápido.
Como na cidade grande, a metrópole, que é muito filha da modernidade, onde tudo é muito acelarado, inclusive nós, pessoas humanas, que provavelmente ainda teremos muito que se acostumar com toda essa velocidade, pois a correria do dia-a-dia não parace fazer exatamente bem às máquinas como coração e cérebro. Dói, mas também é bonito de ver, na cidade, as coisas tentando funcionar.
No interior é um pouco diferente, o tempo é outro, e até o rápido é mais devagar. Anda-se mais com as pernas, vendo coisas que são do interior: pessoas passando a vida na janela, na porta, em frente de casa, jogando conversa fora com os conhecidos - ou nem isso. À noite, têm amigos que se reunem na rua mesmo, pra beber, jogar cartas, alcovitar; para disperdiçar a vida com a tranquilidade dos interiores, onde o galo acompanha, cuidadosa e seriamente, as galinhas a atravessarem a rua, e os terrenos são baldios para que as crianças joguem bola e sonhem em ser grandes jogadores de futebol; interior aonde há sempre muito mato para os bichos e resquícios de uma vida natural, com mangas caindo pelas calçadas e araçás ao alcance de qualquer fome; e onde é sempre bom manter-se informado sobre a tábua das marés e a cotação do camarão.
Os interiores são bacanas; os exteriores também. Há muita modernidade misturada à vida besta, mas nem sempre tão simples, de vários interiores e lugares; inclusive em Marte. Nossa tecnológica modernidade sonda até os buracos de outro planeta, é incrível. Mas é possível que em nosso planeta mesmo mal saibamos o que seja afinal essa tal de modernidade: talvez seja o visual sempre arrojado dos jovens, os relacionamentos cibernéticos, novíssimos utensílios domésticos, o bluetooth. De qualquer forma, na modernidade parece não haver espaço para pés de jambolão; quem quiser ter o prazer de se sujar com as frutinhas, terá de buscar um interior - mas que vá rápido!


Bruno*

quarta-feira, junho 25, 2008

O Segredo*

Sonhei um segredo.
É o que os sonhos fazem, nos contam segredos, de nós para nós mesmos. Mas este segredo eu já sabia; já vinha me sussurrando, muito discreta e cuidadosamente, por ser assunto muito sério. Tão sério que outros preferem guardar esse segredo, compondo músicas e poesias. Sempre lembro de um texto, que me marcou muito e acho muito bonito, do Drummond, e que se chama assim, Segredo, onde se diz: "A poesia é incomunicável, Fique torto no seu canto, Não ame." Lembro também de uma música dos Beatles, "Do you want to know a secret", que também pede cautela para a confissão que é feita. Eu mesmo, sem me dar conta dessa necessidade de manter algo tão importante em sigilo, escrevi há algum tempo atrás um texto entitulado Segredo*.
Mas, afinal, que conteúdo é assim, tão temeroso e importante, para que se guarde tanto segredo? Pois eu acredito que esse segredo seja o amor. Sim, o amor. Ao menos, foi isso que meu sonho quis dizer e que me parece ser o mesmo que esses outros estão a segredar: o amor, o motivo maior para muitos medos, muitos vícios e virtudes; esse sentimento capaz de construir, mas também de destruir, e por isso tanto cuidado; esse sentimento ao qual todos estamos fadados, para nossa alegria ou tristeza; sentimento que move a vida, mas que pode acabar com ela. Sentimento que pode ser a sorte de um carinho praticado por ações e palavras todos os dias, mas que pode também ser um trauma, temido e impronunciável. Que pode ser o que cada um decidir sentir e falar. Que pode ser motivo para lágrimas de quem se vê inundado por um sentimento fortíssimo, mas também pode ser o sangue de um crime passional. É o que John Lennon insiste em dizer em praticamente tudo o que canta, mas também poder ser o amor a uma idéia, a uma obsessão, como foi para Hitler. É o que toda sabedoria tenta ensinar, com religiões, filosofias ou psicologias. É talvez o que torna o mundo o que é, pois se amor não é carinho e respeito, e assim se torna a doença, o pathós inerente a cada indivíduo, então a vida é repleta de destruição, como se cada um desses indivíduos estivesse praticando a morte, a loucura e a destruição. É como se a cada momento um Cristo estivesse sendo crucificado pela traição dos homens, que não souberam ouvir e guardar esse segredo, não souberam amar nem ao próximo, nem a si mesmos. É como se gestos e palavras de intolerância, preconceitos e violências, fossem espinhos a furar a carne de um Buda que busca se livrar de uma existência, que por todos esses motivos, é dor.
O que meu sonho me contou, e o que estes que considero sábios – pois vejo nas palavras destes essa que é a única sabedoria que considero: a paz –, estão a contar, é a necessidade de se amar e a necessidade que este seja um sentimento bom. Esse é o grande segredo, que ao meu modo, sempre tão precário, tento questionar e dizer. É isso que faço às lágrimas, aos suspiros, torto em meu canto, com os modestíssimos textos que escrevo: digo que a amo, que a alegria que me cabe é poder cuidar do amor de uma pessoa que me faz muito bem, de meus amigos, e de todo verdadeiro carinho que possa haver. E que isso é bom porque é a paz.
Viver é muito perigoso, amar é muito perigoso. E tudo é tão mais triste quando não se está a enfrentar esse perigo, buscando e fazendo por isso, com a coragem que precisamos para enfrentar todos os vícios e fraquezas, com a coragem para enfrentar o desafio desse segredo tão importante que, para mim, é a única coisa que realmente importa: o amor que é paz.
Em outras palavras: amo você, minha querida. Amo minha família e todos os meus queridíssimos amigos.
Sonhei que te amava: eis o segredo.

Bruno*

quinta-feira, junho 19, 2008

Desabafo de um (des)agregado

Mario, meu caro Mario
que não me conheces
E eu a si tampouco

Maldito sou, hoje
Pelas íssimas lindas-tristes
[memórias
Que deixaste fundo gravadas
No coração de minha senhoria

Foste dela um amante de sonhos
E de seus filhos mais pai
[que o próprio pai
E de sua casa firme guardião
[e zeloso conviva

Mario, meu caro Mario
Querido menino-homem
que não me conheces
E eu a si tampouco

Maldito sou, hoje
Que o olhar dela
Por vezes, ainda, revela
Quando pousa em mim e se queda
[a pensar em si
Como que na idéia fixa
De uma grande angústia.
Eu, que vim de longe
Me ensimesmar nas calmas
E replanear o tempo vindouro
Sou, num quase repente
Em casa de gente querida
Como que um sinal de mau agouro:
Potência de má influência
Indigna de boa acolhida

Que haverás de ter feito de si?
Quando de mim fizeste isso...

Duas semanas a eu mal sair de casa
Eram a depressão da sua vida toda;
Uma louça que eu lavasse duas vezes
Era o seu excesso de tempo ocioso;
Dois caminhos comigo ao volante
Era o seu cuidado com as companhias;
Dois dias a tomar eu sol no quintal
Eram três meses seus a não trabalhar;
Duas taças de vinho em meu sorriso
Eram todos os seus porres desmedidos;
Dois parágrafos que eu ler me permitisse
Eram todos os seus cigarros já fumados

Fosse eu, num dia de tristeza
Por saudades de casa ou mesmo dor
Chorar minhas fraquezas
[feito criancinha
E já eu seria você sem destreza
A uma lâmina em si mesmo pôr
E a deitar-se, débil
[num canto da cozinha

Não deixo, porém, de sentir-me espetado
Mas tenho de seguir, apesar de espantado
Com a estranha, ruim sensação de ser julgado
Menos por minhas próprias limitações
Muito mais pelas sobras de outro alguém.

Sabe, Mario, os dias aqui
[no parque de campismo
Têm sido quentes, belos e agradáveis
Leio sem ser você fumante
Bebo sem ser você desorientado
Tomo sol sem ser você vagabundo
Pedalo sem ser você paizão
Lavo minhas cuecas sem ser você bon-vivant
Medito sem ser você caso perdido.

As crianças vão bem, obrigado:
Grandes, sagazes e lindas
– Ou ao menos assim iam
[até poucos dias atrás

Teu passado grande amor, nem tanto
Que tem na cabeça os filhos biológicos
Mais uma adotiva, enferma
Mais dois machos em seus pés a mijar
Mais uma Academia de que se livrar
Mais eu
[agora menos
Que pra além de ser um produto
[cheio das próprias falhas
Vinha, ainda, com um rótulo
que ela somente enxergava
e onde, decidida, lia:

[Marião Flash Back
[Não consumir depois de 1984

Piadinha minha, meu caro Mario
Piadinha minha, desgraçada que só

Mario, meu caro Mario
O mar e o céu parecem um só
Nesse lindo fim de tarde
E nada há que eu possa fazer
Senão voltar pra minha humilde tenda
E sorrir as graças de mais um dia
de pós Mario [tendo sido
expulso da graduação.

Mas, uma vez mais
Me resta um bocado
desse desgraçado humor
De quem não se julga culpado
Mas aceitou da tortura a dor.
Se sou tolo
Não hei de saber
Senão que não sou você

Noves fora
És muito caro, meu caro Mario.


Algoz

quarta-feira, junho 11, 2008

Metáforas com bandeira vermelha

Quando já se nadou mais de mil metros em menos de meia hora, numa piscina semi-olímpica, e ouve-se, a cada toque na parede, um bem gritado “o descanso é pra lá!”, pode-se sem muito esforço pensar em transformar tal grito em lema de vida: uma motivação pra se continuar algo ou em algum caminho. Se o descanso é sempre pra lá, está-se sempre a batalhar.
Isso nos faz pensar…
…que quando se está a fazer alguma grande mudança, é comum que nos últimos dias antes do desfecho das coisas, ou mesmo – e ainda mais – nas últimas horas, se pense que o descanso, pra além de não ser uma opção, há de ser a recompensa por tantos e tamanhos esforços: e por tudo isso, as grandes mudanças podem nos ensinar: o descanso é pra lá.
Isso nos faz pensar…
…que a vida, esse eterno camaleão, mesmo quando se deixa reger por algum lema que a ela tentemos forçar, ainda assim pode nos mostrar muita ingratidão a esse tipo de obstinação: porque ela – faça-se a chuva no molhado! – é um mar profundo ao infinito, de que a maioria de nós não vê senão a linha d’água – quando vê. Salto na metáfora: quando levamos a vida sempre a buscar o descanso pra lá, e pra lá, e pra lá, estamos eventualmente a criar meios de nos afogarmos a nós próprios (porque ela mesma, a vida, nunca afoga: nem a nós nem a si mesma). Salto paralelo: quando levamos a vida a sempre e mais preparar grandes mudanças, e a cansar-nos preparando, e preparando, e preparando, estamos a fornir a possibilidade de uma frustrante (e cansativa e cansada) não-mudança, ou mesmo de uma eterna mudança que não saiba se livrar de passados – e de futuros, por que não? – que, pra além de eventualmente serem pesos mortos, ainda podem vir a nos fazer ter de livrar-nos de possibilidades mais importantes de nós, e de livrar-nos, e de livrar-nos.
Na piscina, como nos momentos decisivos de uma grande mudança, sim, o descanso é pra lá?... vá lá. Mas no mar, essa vida intangível e imprevisível, é preciso pensar… e saber-se vulnerável… e ser um bocadinho preguiçoso, às vezes… talvez.


Algoz

terça-feira, junho 10, 2008

Faroleiro

Havia meia dúzia de gajos praticando windsurf. Passava pouco das dezoito horas, e a eles mal se podia ver, pois que suas velas deslizavam exatamente sobre a faixa de mar que o reluzir do sol cobria. Fiz a mão em aba sobre os olhos, e consegui enfim fazer minha vista mais ao longe. Ao fundo, entre os surfistas veleiros e o horizonte, na linda faixa doirada de água, se mostrava o forte que até menos de década antes – dizem – ficava a uma caminhada rasa e segura – na maré baixa – daquela praia onde eu então chegava. E como o forte era visivelmente distante dali, me peguei a imaginar perigos e romantismos que aquela dita caminhada não teria proporcionado, por um exemplo apenas, a um rapaz apaixonado que, após tempos e distâncias de sua amada, a levasse ali pra molhar as canelas num passeio matinal e, tendo a certeza visual de maré baixa, resolvesse palpitantemente levá-la – no colo, caso fosse – ao distante e belo forte. Quiçá se deixassem quedar por lá, velando-se um ao outro, sempre que se cansassem de fazer amor, até que a maré voltasse a baixar, obrigando-os a tomar a triste-necessária decisão de regressar, quando é quase certo que quereriam por lá ficar, repetindo o processo eternamente, enquanto lhes durasse a eles a chama da paixão honesta de quem entrega ao outro não só o corpo, mas também os ponteiros do relógio da própria vida, enquanto a própria vida não tem porquê nem pra onde querer ir.
Mas mal começava a me prolongar em malícias, nas estórias que se estendiam entre o que minhas retinas enxergavam e o que meus neurônios cambalhotavam, daqueles amantes imaginários que meu pequeno coraçãozinho paria, quando vi, ao pé esquerdo de meus olhos, uma moça pertinho de mim.

***

Havia uma faixa doirada na água salgada. Fiz a mão em aba pra ver o que enxergava. E ao pé esquerdo de meus olhos, maior que as velas sobre o oiro d’água, uma moça sentada mirava sozinha o mar. Lembrava sem esforço aquela gostosura espivetada de mulher menina a quem eu quisera, quatro estações antes, dar colo e carinho. Usava óculos de sol largos e grandes, tinha os cabelos longos e pretos, e sentava-se abraçada aos joelhos, coberta por uma canga de tons alaranjados. E isso apenas bastou pra que eu me recordasse daqueles belos dias de praia que havia já quase um ano tínhamos compartilhado, dormindo carinhosamente abraçados um ao outro, naquela saudosa barraca azul.
Continuei caminhando, a moça-lembrança ficando pelo calcanhar esquerdo de meus olhos. Mais à frente avistei uma minha conhecida, a salva-vidas daquelas areias, menina-moça de sorriso bonito, com quem fui ter amenidades sob aquele sol de fim de tarde. Ela conversava com um seu amigo de profissão. Deixei aos pés deles minhas sandálias, e fui molhar os meus. Alguém diria que o vento frio levava minhas saudades pro mar, na direção das terras longínquas onde havia pouco eu me despedira dos meus mais queridos – ao que eu perguntaria se essas partículas de saudade chegariam a tão distantes destinos, tantos e tamanhos os fatores a lhes influenciar a navegação. Uma criança brincava sozinha naquela água gelada. Em duas semanas começaria o verão. Molhei também minhas mãos, como rito inconsciente de tentativa de alguma purificação, talvez.

***

Havia um cara solitário na areia da praia. Fazia já uma hora que estava ali, em silêncio quase completo, contemplando os próprios pensamentos, rodeados de areia e pessoas e água salgada.
Coisa de quinhentos metros de mim, a nordeste, um forte. Entre nós, meia dúzias de velas. E atrás do forte, acima do horizonte, um sol a pôr toda essa cena num doirado tão ofuscante quanto lindo. E tudo a oeste de mim era a praia toda, numa curva suave dos seus mais de trinta quilômetros de lonjura, que acabava num cabo que era uma imensa parede de mata fechada. Mas quando me virei pra ver isso tudo, descansando minha vista da reflexão, vi ali, a poucos metros de mim, uma moça. Ela estava se levantando e tinha nas mãos uma canga de tons alaranjados e usava uma bermuda de surfista e uma blusa de moletom branca de fecho-ecler. Ventava muito e seus longos cabelos pretos faziam par com o pano laranja numa dança simples e bonita. Começou a caminhar em minha direção. Senti lágrimas em meus olhos, que não saíram e viraram um sorriso resignado, de quem aceita até com certo contentamento os ardis do amor, esse camaleão que nunca se descolore. Três ou quatro passos depois, parou e olhou pra trás, como quem confere se nada esqueceu. Então eu vi sair do mar um gajo, a carregar sua prancha, e a caminhar na direção da charmosa moça. E os dois continuaram caminhando, na direção do cara só, que era eu.
Nisso chegou à praia outro casal, desses que são bonitos por caminharem lado a lado sem afetação, e por irem à praia num final de tarde, e por serem respeitadores do mútuo silêncio, e por se abraçarem como quem fecha a porta do lado de dentro, e qualquer canto onde se encosta é lar. Pararam a cinco ou seis passos de mim, e nisso éramos já quase apenas os três, que o dia beirava as vinte horas e quase todos se haviam ido – apesar da faixa doirada que ainda cegaria o forte pelo menos por uma hora mais –: as velas e a criança pecilotérmica inclusive.
Então o bonito casal silencioso se fez ao caminho. E eu, com minhas humildes saudades, fui também me indo em boa hora pra deixar o farol do forte render em paz o sol de mais uma sua longa jornada de quase-verão.


Algoz

sábado, junho 07, 2008

O Menino*

O menino do calendário. Que tinha o calendário do ano inteiro decorado, todos os feriados, qual dia cairia em tal dia da semana. Até de outros anos, passados para se lembrar, futuros para se esperar.
Assim era o menino do calendário.
Que era também o menino das correspondências. Sabia aonde ficava praticamente todas as caixas de correio de sua cidade, quanto custava cada selo e de quantos seriam necessários para mandar suas cartinhas; quanto tempo estas deveriam demorar para chegar ao seu destino. Sabia até que por lei - provavelmente um resquício da era pré-telefônica e digital, um trauma da ditadura, talvez - era proibido a violação de cartas por outra pessoa que não fosse o destinatário desta. (Nunca procurou conferir a autenticidade desta lei, que ouvira de alguém, pois esta já estava suficientemente aprovada por seus inquestionáveis direitos de intimidade e sentimento de ragazzo enamorado sujeito às penúrias de um relacionamento à distância.) Sabia também os horários em que o carteiro deveria passar todos os dias; e que suplício, que felicidade, era aguardar uma missiva de amor, desse que em seus idos tempos de glória era um verdadeiro Hermes a agraciar aquele apaixonado rapaz com as dádivas de Eros.
Se naqueles tempos fosse conhecedor dos clássicos da música dedicados ao coito nessa sofrida condição, consolaria-se ao som de Mr. Postman, e com certeza faria desta um hino, ao qual todos os frios e desiludidos mais velhos deveriam mostrar respeito.
O tempo passou e o menino do calendário, que também era o menino das correspondências, cresceu, conheceu os motivos da frieza e desilusão dos mais velhos - chegou a desistir de corresponder-se, por desacreditar dessa possibilidade de comunicação -, mudou de endereços, de destinatários, virou moço, e há de virar homem e velho; e estes haverão de ser sempre os filhos daquele menino, que decorava os dias e esperava por correspondências.


Bruno*