Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, abril 01, 2008

Sintagmas

Um ponto de ônibus também é, por vezes, uma espécie de mesa de bar.
Não eram oito da madrugada ainda, e lá estava eu. O ônibus, sempre pontual o suficiente pra permitir que certos cidadãos se entreguem à terrível arte de puxar assunto com estranhos, cumpria muito bem naquela manhã essa sua inerente função social. E se não é necessário um mote pra que se comece uma conversa, quem dirá quando há um – pequeno que seja. E havia. O ponto, nessa época, era na frente do portão de uma casa. E nessa manhã triste – porque eu estava bastante infeliz com o que fazia por sustento – a dona da tal casinha estava, logo cedo, lavando seu quintal. E fazia isso com uma economia de água que me faria parecer irônico ao narrá-la. Mas era verdade. Com um pote daqueles de sorvete – que deve ter lá seus dois litros – ela ia jogando água, esfregando, e jogando água pra escorrer o sabão. Não deve ter usado dez daqueles. Pra quem tinha uma vizinha que empurrava folhas caídas com uma mangueira, aquela senhora era quase a personificação do conceito de ecologicamente correto. E foi durante tal processo que uma senhora, também à espera do coletivo, resolveu se falar...
– Só [] mesmo... (A senhora da casa era imigrante do [], ou descendente de.)
– Porque brasileiro mesmo não se preocupa em economizar água.
Porque só essa outra cultura pensava assim e assado e blá, blá, blá. Quando o ônibus enfim chegou, era tarde: já ela tinha emitido opiniões o suficiente pra me fazer entrar já cansado no coletivo.
Me fiz distante dela, evitando assim o caso de ela querer continuar o assunto com alguém que estivesse já a par de sua incrível visão crítica de mundo. Consegui, alguns pontos depois, um assento. Adormeci. Acordei no ponto final, desci, caminhei meu quinhão, peguei o outro ônibus. E nesse, que não viajava comigo por menos de uma hora, acabei não encontrando assento. Logo, ao invés de me entregar ao sono, acabei mergulhando em meus pensamentos...

***

E não conseguindo me esquecer da tal convicta senhora, que atribuía aos [] a qualidade do cuidado com a economia de água, passei então a cogitar no que imaginaria ela de outras questões. Imaginaria que no fundo da casa da senhora que lavava o quintal haveria um lindo jardim colorido e bem cuidado? E que todos os [] fariam assim também? De repente uma ficha me quis cair na cuca. Pensaria ela que todo brasileiro é desleixado? (Se sim, ela certamente se excluiria disso.) Ah!, o ser humano e suas generalizações convictas... Pensaria ela que todo [] segue a religião []? Que todo [] usa []? Que todo homem de bigode é machista? Que todo russo bebe vodka? Que o partido X é bom e o Y é mau? Que toda [] é puta? Que todo [] é gay? Que todo poeta é vagabundo?
É que eu tinha uma vizinha, nessa mesma época, que também era [] (como a senhora que lavava o quintal) – e participava das festas da colônia e tudo, e os três filhos não podiam namorar quem não fosse [] como eles. E essa minha vizinha, toda fechada dentro dos costumes de seus antepassados, foi quem, mais ou menos um ano antes dessa manhã do quintal lavado a balde de sorvete, solicitou à prefeitura que arrancasse a árvore que ficava, na calçada, entre a casa dela e a nossa. A árvore que, além de atrapalhar a visão do muro pichado do outro lado da rua, ainda tinha o péssimo hábito de atrair os bem-te-vis e as maritacas todos os dias, em vários horários. A árvore que impunha sombra às duas garagens, quando o dia se fazia quase insuportavelmente quente. Maldita seja! (Era certamente o que ela vinha pensando já havia algum tempo.) E a prefeitura, muito solícita pra coisas importantes, mandou um seu caminhão de uma sua secretaria que na época se chamava algo como “Conservação de áreas ajardinadas”, pouco mais ou muito menos do que isso. E aqueles mais de dez homens – três assassinos e o resto de testemunhas – atenderam ao nobre pedido de minha vizinha [].
Então pensei em como eu seria tolo de me considerar, se poeta fosse, um vagabundo. Porque seria mesmo possível que eu me forçasse a sê-lo, e que forçasse a realidade em torno de mim a girar-me com esses olhos. E ainda, se assim fosse, mais certo é que eu não tivesse estado naquele ponto, naquela manhã, pra pensar essa bobagem toda. Porque é possível que a tal senhora nem fosse tão convicta. Talvez fosse apenas uma senhora carente de afeto que, numa manhã quase fria, tenha se sentido impelida a desabafar sua triste condição humana... e que esse desabafo – de algo muito maior e intangível – tenha saído em forma de um protestinho tolo e inútil – equivocado, até – que ela mesma talvez nunca antes tivesse cogitado fazer, mas que ali, naquela manhã triste, tenha lhe calhado dizer.

***

E de tanto pensar perdi o ponto, e cheguei vinte minutos atrasado. Naquele mesmo mês fui finalmente demitido. E virei uma espécie de poeta.


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Texto guiado por pensamentos. Fácil errar. Aqui, um acerto. (E quantos não gostariam de pôr bonitamente num papel seus devaneios diários?)

abril 01, 2008 5:57 PM  
Anonymous Anônimo disse...

"Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo". (Sigmund Freud)
Se hoje me colocassem em uma biblioteca medieval gigante com 500mil livros e lá houvesse um único texto seu, eu saberia.. (Súcubo)

abril 01, 2008 8:56 PM  

Postar um comentário

<< Home