Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, abril 22, 2008

Pedras ao copo

Era outono e fez frio e choveu. Me lembro disso porque tinha virado a noite nublada trabalhando, a lua era cheia e de vez em quando brilhava forte as pedras no quintal. Vi o dia chegando pela lâmpada do quarto brincando de estrela enquanto a janela, ainda fechada, já clareava, devagar mas impiedosa, o quarto. Meus olhos ardiam, meu estômago doía, a água não parava de passar café. Pela hora do almoço me deitei e dormi por três horas. Voltei ao cansaço. Era outono e fez frio e choveu. E por isso me lembro que foi nesse dia. E o dia passou.
Quando a noite voltou e eu não tinha mais cabeça pra tarefas, escorreguei a bunda no assento, apoiei a nuca na cadeira, estiquei as pernas e os pés. Era bom ter sobrevivido. E estar fazendo despretensiosos vinte graus de ângulo com o chão, olhando o pernilongo preso ao teto pela teia inabitada. Pus aquele bom e velho fone de ouvido de estúdio, daqueles que o mundo acaba e a gente morre sem saber, com a música fluindo na gente feito a última injeção. Então a seleção de jazz começou a tocar. Fechei os olhos. Ah!, aqueles saudosos fones de estúdio... Eu sentia meus dedos tocando aquele piano, e então sentia minhas mãos tocando aquele corpo. E pensava num botão que sentisse a ansiedade de desabrochar pra sentir o calor do sol a acender em suas pétalas o desejo da abelha que lhe viria acariciar. E pensava numa lâmpada apagada que sentisse a ansiedade de ser acesa pra observar, em silêncio, dois corpos que se amassem inauditamente no chão. Então pensei também num grão de areia do deserto que se sentisse desesperadamente ansioso por uma gota d’água que viesse do céu a lhe lambiscar, enquanto uma criança arteira, longe dali, olhasse pela janela a neve caindo na rua e sentisse uma ansiedade insuportável pela primavera.
Pensei então numa moça – esse pensamento vinha desde o começo da música, como pano de fundo de todas as outras imagens –, numa moça que estivesse, sozinha em casa, depois de um dia de trabalho, esperando por mim. Esperando pelo meu virar de chave, pelos meus pés descalços combinando com a roupa social que eu usaria só quando não precisasse. Pensei nessa moça que esperasse pela garrafa de vinho que minhas mãos pousassem na mesa pra então apertá-la cheias de desejo pela cintura. Nessa moça que esperasse pelo meu sorriso pra me beijar, e pelo meu olhar pra entregar seu corpo ao meu. A moça que esperasse pelo pêssego com que eu lhe daria bom dia pela manhã...
Então a primeira música acabou e não quis ouvir outra, como quem quer fixar uma imagem. Abri os olhos, e o pernilongo continuava lá. Tomei uma dose do uísque que aquela canção pedia, e fui deitar. Fazia frio e a chuva voltou. Então o telefone tocou. E uma voz de menina, vinda da boca de uma mulher, embalou os últimos pensamentos que tive naquele longo dia de outono.


Algoz

3 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Silêncio...mas só porque quero guardar o gostinho de ler isso..
Em relação ao trabalho(o de escritor)lindo! Sempre lindo! (T.T)

abril 23, 2008 1:01 PM  
Anonymous Anônimo disse...

A vida de novo. Nada é total.

abril 23, 2008 3:23 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Pedras bonitas...

abril 26, 2008 4:55 PM  

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