Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, junho 10, 2008

Faroleiro

Havia meia dúzia de gajos praticando windsurf. Passava pouco das dezoito horas, e a eles mal se podia ver, pois que suas velas deslizavam exatamente sobre a faixa de mar que o reluzir do sol cobria. Fiz a mão em aba sobre os olhos, e consegui enfim fazer minha vista mais ao longe. Ao fundo, entre os surfistas veleiros e o horizonte, na linda faixa doirada de água, se mostrava o forte que até menos de década antes – dizem – ficava a uma caminhada rasa e segura – na maré baixa – daquela praia onde eu então chegava. E como o forte era visivelmente distante dali, me peguei a imaginar perigos e romantismos que aquela dita caminhada não teria proporcionado, por um exemplo apenas, a um rapaz apaixonado que, após tempos e distâncias de sua amada, a levasse ali pra molhar as canelas num passeio matinal e, tendo a certeza visual de maré baixa, resolvesse palpitantemente levá-la – no colo, caso fosse – ao distante e belo forte. Quiçá se deixassem quedar por lá, velando-se um ao outro, sempre que se cansassem de fazer amor, até que a maré voltasse a baixar, obrigando-os a tomar a triste-necessária decisão de regressar, quando é quase certo que quereriam por lá ficar, repetindo o processo eternamente, enquanto lhes durasse a eles a chama da paixão honesta de quem entrega ao outro não só o corpo, mas também os ponteiros do relógio da própria vida, enquanto a própria vida não tem porquê nem pra onde querer ir.
Mas mal começava a me prolongar em malícias, nas estórias que se estendiam entre o que minhas retinas enxergavam e o que meus neurônios cambalhotavam, daqueles amantes imaginários que meu pequeno coraçãozinho paria, quando vi, ao pé esquerdo de meus olhos, uma moça pertinho de mim.

***

Havia uma faixa doirada na água salgada. Fiz a mão em aba pra ver o que enxergava. E ao pé esquerdo de meus olhos, maior que as velas sobre o oiro d’água, uma moça sentada mirava sozinha o mar. Lembrava sem esforço aquela gostosura espivetada de mulher menina a quem eu quisera, quatro estações antes, dar colo e carinho. Usava óculos de sol largos e grandes, tinha os cabelos longos e pretos, e sentava-se abraçada aos joelhos, coberta por uma canga de tons alaranjados. E isso apenas bastou pra que eu me recordasse daqueles belos dias de praia que havia já quase um ano tínhamos compartilhado, dormindo carinhosamente abraçados um ao outro, naquela saudosa barraca azul.
Continuei caminhando, a moça-lembrança ficando pelo calcanhar esquerdo de meus olhos. Mais à frente avistei uma minha conhecida, a salva-vidas daquelas areias, menina-moça de sorriso bonito, com quem fui ter amenidades sob aquele sol de fim de tarde. Ela conversava com um seu amigo de profissão. Deixei aos pés deles minhas sandálias, e fui molhar os meus. Alguém diria que o vento frio levava minhas saudades pro mar, na direção das terras longínquas onde havia pouco eu me despedira dos meus mais queridos – ao que eu perguntaria se essas partículas de saudade chegariam a tão distantes destinos, tantos e tamanhos os fatores a lhes influenciar a navegação. Uma criança brincava sozinha naquela água gelada. Em duas semanas começaria o verão. Molhei também minhas mãos, como rito inconsciente de tentativa de alguma purificação, talvez.

***

Havia um cara solitário na areia da praia. Fazia já uma hora que estava ali, em silêncio quase completo, contemplando os próprios pensamentos, rodeados de areia e pessoas e água salgada.
Coisa de quinhentos metros de mim, a nordeste, um forte. Entre nós, meia dúzias de velas. E atrás do forte, acima do horizonte, um sol a pôr toda essa cena num doirado tão ofuscante quanto lindo. E tudo a oeste de mim era a praia toda, numa curva suave dos seus mais de trinta quilômetros de lonjura, que acabava num cabo que era uma imensa parede de mata fechada. Mas quando me virei pra ver isso tudo, descansando minha vista da reflexão, vi ali, a poucos metros de mim, uma moça. Ela estava se levantando e tinha nas mãos uma canga de tons alaranjados e usava uma bermuda de surfista e uma blusa de moletom branca de fecho-ecler. Ventava muito e seus longos cabelos pretos faziam par com o pano laranja numa dança simples e bonita. Começou a caminhar em minha direção. Senti lágrimas em meus olhos, que não saíram e viraram um sorriso resignado, de quem aceita até com certo contentamento os ardis do amor, esse camaleão que nunca se descolore. Três ou quatro passos depois, parou e olhou pra trás, como quem confere se nada esqueceu. Então eu vi sair do mar um gajo, a carregar sua prancha, e a caminhar na direção da charmosa moça. E os dois continuaram caminhando, na direção do cara só, que era eu.
Nisso chegou à praia outro casal, desses que são bonitos por caminharem lado a lado sem afetação, e por irem à praia num final de tarde, e por serem respeitadores do mútuo silêncio, e por se abraçarem como quem fecha a porta do lado de dentro, e qualquer canto onde se encosta é lar. Pararam a cinco ou seis passos de mim, e nisso éramos já quase apenas os três, que o dia beirava as vinte horas e quase todos se haviam ido – apesar da faixa doirada que ainda cegaria o forte pelo menos por uma hora mais –: as velas e a criança pecilotérmica inclusive.
Então o bonito casal silencioso se fez ao caminho. E eu, com minhas humildes saudades, fui também me indo em boa hora pra deixar o farol do forte render em paz o sol de mais uma sua longa jornada de quase-verão.


Algoz

7 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Lindo, saudade....

junho 10, 2008 10:28 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Parece que te ouço narrando, e ao fundo, o ruído do vento que sopra....

Saudades de você....

junho 10, 2008 5:38 PM  
Anonymous Anônimo disse...

"Nisso chegou à praia outro casal, desses que são bonitos por caminharem lado a lado sem afetação, e por irem à praia num final de tarde, e por serem respeitadores do mútuo silêncio"... Texto bonito do caramba, sem afetação. Senti como se eu estivesse dentro da cabeça de algúem, ouvindo o que (às vezes) o silêncio "pensa". Beijo.

junho 11, 2008 8:09 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Caralho-o-o. Não tenho outra palavra.

junho 11, 2008 4:02 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Puta merda. Eu sempre pensava em como estas faixas douradas (/prateadas) do mar queriam ser mote de arte. Você sabe como fazer. Refresco-me com tuas palavras.

junho 11, 2008 4:05 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Entrei nessa praia, caminhei um pouquinho, sentei ao seu lado, conversamos e fumamos uma palha. Foi bom, não foi?
Fica em paz.
Beijos, Jujuba.

junho 11, 2008 11:44 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Um texto plácido, sem dúvida. Mas ainda assim forte pra cacete. Abraços,
Careca

junho 13, 2008 10:44 AM  

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