Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, março 25, 2008

Reabilitação

Conversa de mesa de bar sempre puxa outra pela memória. Outro dia me lembrei daquele camarada cervejeiro que aqui e ali dividia garrafas e confissões amorosas comigo. Nunca freqüentamos a vida um do outro, mas vinha desde a primeira semana do primeiro ano de faculdade que nos encontrávamos pelos bares. E foi numa daquelas noites que, eu no balcão, ele jogando sinuca, compartilhamos olhos arregalados pela moça com calor que passava rumo ao banheiro. Depois tecemos alguns românticos comentários sobre ela e suas quatro amigas, e bastou. Daquela noite pra frente, se os dois apareciam no mesmo bar, no final da noite tinha sempre pelo menos uma dúzia de garrafas secas e um par de mulheres dissecadas. Esse cara era um colecionador de relacionamentos, tinha saia no verbo pra mesa de boteco que não acabava mais. Eu tentava acompanhar, mas virava e mexia eu mal falava, só bebia, ele contava e eu só ouvia.

***

A primeira namorada do [] – nem me lembro se ele usava nome ou apelido – tinha sofrido horrores com ele. Ciumento que era, proibia à moça certas roupas, certas amizades, certos lugares... Chegava mesmo a persegui-la, quando desconfiava que a incauta pudesse subtrair sua honra de macho. Alguns anos de inferno que transformaram a menina numa sádica, e botaram por fim alguma sensatez na cuca do fulano. Do fim do relacionamento, nem preciso dizer. (Foi feio.)
Então ele se envolveu com uma veterana, logo no começo da primeira faculdade que fez. Essa já começou falando que não tinha relacionamento que não fosse aberto, queimava velas no peito dele, tinha amigas pra lá de íntimas, e outras tantas novidades que ele acabou por aceitar e, algumas delas, até a incorporar. No final, a moderninha acabou se apaixonando por ele, parece que queria até se casar. E ele, que ela própria tinha transformado num folião do mais aplicado, era agora perseguido. (Dessa história eu me lembro de ter rido muito... e a cada detalhe sórdido eu ria mais e mais... e eram muitos detalhes sórdidos, muitos...) E viveu mais um inferninho de alguns longos meses.
Depois ficou alguns anos se metendo em confusão. Quando as coisas iam mal, e ele queria sumir, não conseguia... tinha sempre uma justificativa pra si mesmo pra continuar sofrendo dentro de relacionamentos doentes que sempre acabavam mal. Quando as coisas iam bem, e ele se dedicava até com certo desapego, era a moça que – talvez assustada – sumia do mapa sem dar satisfação. (E cada uma dessas histórias, ali na mesa do bar, me fazia rir tanto que eu dificilmente perdia minha sobriedade, tantas e tamanhas lições que eu me pegava sempre a absorver.)

***

Fazia já uns três anos que ele não cruzava o meu caminho. Me viu sozinho numa mesa de canto, sorriu. Já veio com um copo e uma garrafa. Mas não tinha garrafa na mesa. Antes que ele falasse, eu disse que tinha voltado pra cachaça, que era como eu tinha começado a beber. Acabei indo pegar um copo, afinal fazia tempo que não bebíamos juntos. Então, como se nunca tivéssemos saído do bar, ele começou a contar...

Que conheceu uma moça bonita, inteligente, lá do curso dele na faculdade. Se apaixonaram. (Nesse dia eu já comecei o assunto rindo, imaginando quanto álcool não levaria pra ele me deixar a par de três anos de aventuras.) A fulana era mulher de policial. (Eu cheguei a chorar de tanto rir de umas passagens absurdas das loucuras que ele tinha cometido.)

Muitas garrafas depois, quando ele terminou de contar, eu perguntei, rindo cordialmente:
– Cara, você não muda... Já pensou em clínica de reabilitação?
– Hein?
– Clínica de reabilitação.
Parece que nesse momento o álcool subiu a temperatura, e aqueles três anos de distância me transformaram num intrometido irresponsável. Ele disse, levantando a voz:
– Você que é alcoólatra e eu que preciso de reabilitação?!
Fiquei quieto. Eu sabia mais detalhes doentios dos relacionamentos dele do que ele mesmo imaginava, tão rápido em sofrer por um se mergulhando em outro.
– Hein?! Você já foi pra reabilitação?!
Continuei quieto, talvez ele se acalmasse.
Lançou mão de alguns moralismos, jogou trinta reais na mesa e saiu. Pra nunca mais.


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

É tão bom ler você...

março 26, 2008 8:36 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Um dia alguém disse:"a matéria é feita dos sonhos". Pense nisso!
O que eu li agora...é muito mais que matéria..Dá vontade de ler mais e outro e outro e outro....

março 26, 2008 5:51 PM  

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