Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, março 18, 2008

Interpretação

Puxei a cadeira, ela se sentou. Perguntei o que queria.
– A cerveja pode escolher, eu só quero copo americano.
Fui, voltei, me sentei.
– To começando a acreditar na teoria da bola de neve... Eu devia ter ido no aniversário da [], o [] ia e eu perdi a oportunidade... e aquela pata da [] deve ter aproveitado... Agora parece que tudo tá errado: o trabalho, o curso, eu mesma... Não quero acreditar na bola de neve, mas essa semana fiquei supersticiosa... você acha que eu devo acreditar?... o que você acha?
– Explica isso aí...
– Sei lá, depois que a gente faz ou deixa de fazer uma coisa e acha que foi cagada, parece que tudo começa a dar errado, e não pára mais.
– Sei... Lembra da []?
– A louca?
– Isso... não te contei como eu conheci a Pi?
– Sua mulher?
– A própria.
– Nunca... como foi?

***

Eu namorava uma moça bonita, inteligente, gostosa, e mais velha. (É da natureza dos homens achar que mulher mais velha é um tipo de troféu que se exibe aos amigos como prova de uma virilidade maior.) Eu, todo pimpão, namorava essa moça. Mês vai, mês vem, fazia já quase um ano que estávamos juntos. Eu curtindo a vida, ela ficando mais velha. Matemática simples: uma mulher com plano de casamento mais um moleque louco pra curtir a vida, igual a um término conflituoso de relacionamento. Isso pra pintar a coisa com uma equação reduzida. Foi mais quase um ano de inferno. Choradeiras, gritarias, telefonemas intermináveis, intervenções noturnas, tanto tempo de semear perdido... uma grande tristeza. É sorte que nós, seres humanos, tenhamos a capacidade de aprender com nossos próprios erros.
Uma vez, naquele tempo áureo que são os primeiros meses de alguns relacionamentos – porque há alguns, poucos, é verdade, que já começam mal –, fomos a uma festa de amigos dela. Coisa pequena, não éramos quinze no apartamento. Uma moça cacheada me chamou a atenção. Trocamos alguns olhares. De repente ela estava ao meu lado, conversava comigo. Eram amenidades, minha então namorada de frente comigo, conversando com um amigo em comum. Estávamos todos engraçadinhos, o álcool começava a subir de seu dia cheio de trabalho. No dia seguinte havia um telefone novo na agenda do meu aparelho. E parece que ninguém sabia disso, pois nunca foi assunto. E o tempo passou. O próprio inferno daquele relacionamento já tinha passado fazia tempo, eu tinha de puxar pela memória pra me lembrar daquela moça bonita, inteligente, gostosa e mais velha que me infernizou por quase um ano depois das coisas tão bacanas que tínhamos vivido juntos.
Era um começo de noite quente, eu tomava uma cerveja sozinho no balcão de um bar – meus amigos sempre se horrorizaram desse hábito esparso que eu tinha, diziam que não era saudável, e alguns até que era perigoso. Alguém tocou meu ombro, e era ela. Demorei tanto pra reconhecer que ela acabou por se re-apresentar. Disse seu nome e contou da festa no apartamento do []. Eu continuava sorrindo minha ignorância. Então ela disse que eu era namorado da [], e contou da troca de telefones na festa. Então me lembrei. Confirmei com ela que seus cabelos eram compridos na época, e finalmente me ocorreu que naquela noite ela tinha sido apresentada com um apelido, e não com aquele nome que agora me dizia. E ela confirmou: Pi. Então se sentou, pediu um copo. E alguns anos depois estávamos morando juntos – ou casados, como diziam nossos pais aos amigos.

***

– Caraca!
– Pois é... o mundo dá voltas... dizem.
– E por que Pi, que mal pergunte?
– Pi, de Pinochet.
– Ai, ai, ai! E aí?
– Quando a gente se reencontrou tinha acontecido tanta coisa na vida dela... que ela já tava bem mais tranqüila...
– É, até assustei, pra mim ela é bem sossegada mesmo...
– É, acho que eu mereço... depois de tudo que eu passei...
– Peraí!... você parece que sempre procurou, vai...
– É...
– Agora... o que tem isso com a minha teoria da bola de neve?
– Sei lá... é você que tem que saber... Vou lá pegar mais uma...


Algoz

1 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Ficou interessante a montagem do conteúdo da mesa de bar com cerveja: diálogo + narrativa + diálogo; + uma experiência bacana + a saudade que eu tenho dessas ocasiões e de um copo americano...

...
Beijos
...

março 19, 2008 8:41 AM  

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