Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, junho 19, 2007

O primeiro dia?

Como diria aquele filósofo tupiniquim: “Melhor pingar do que faltar”. Então comecei em novo emprego que mal sabia até quando poderia conservar. Duas semanas, talvez. E seria o tempo que eu teria pra convencer três pessoas de que era eficiente o suficiente pra que ficassem comigo por mais. Capaz eu era, no primeiro dia senti isso e sei que os fiz sentir o mesmo. Mas minha confiança nessa história de ser capaz estava abalada, eu que tinha sido – muito recentemente – sumariamente ceifado da vida de alguém, apesar de minha suposta capacidade. Desci a mesma rua por onde, dois meses antes, caminhava contente a caminho de uns documentos que me abriam a possibilidade das portas de um mundo todo novo. Tinha sonhos. Agora – os documentos engavetados –, descia a mesma rua, ceticamente, atrás de uns trocados a mais que me fizessem menos inseto, e de ocupar meu tempo com tal intento. Qual o quê? O fato de estar ocupado, e ocupado ganhando dinheiro – era pouco, mas era dinheiro –, me fazia de repente sonhar de novo. Então, contra a minha própria vontade, e contra a vontade de qualquer um, me peguei – no primeiro dia de trabalho –, por incontáveis vezes, absorto no pensamento daquela mulher. Por que eu sonhava, se sabia que era inútil? Porque eu era um inútil. Um inútil cujos sentimentos se recusavam a morrer. Quereriam meus sentimentos que eu, em lugar deles, morresse? É cedo. Que culpa tinha eu de eles serem inúteis? O dia passou.
Subia de volta a tal rua, esquecido de mim e de minhas desimportâncias. Nem me lembrava de ter acabado de cruzar a alameda onde, em meus assassinados sonhos de um tempo nada remoto, eu tinha descoberto um restaurantezinho aconchegante e acessível pra levá-la. A mesma alameda onde então trabalhava o cara que realizava os meus sonhos. Os meus inúteis e risíveis sonhos. Nem me lembrava. Mas então – e isso só pode ter sido castigo pela minha idiotice –, eis que vem correndo, na minha direção, o dito-cujo. Sim, o fulano que dormia feliz as minhas noites de desassossego. Dormiria feliz? Dormiria? Sangue em meus olhos. Continuei meu caminho. Parei na primeira padaria que vi. Entrei. Precisava comer, apesar de minha fome ter virado apatia três minutos antes. Mas a visão daquelas frituras no balcão me fez virar as costas. De repente meu corpo se enjoava, uma vez mais, pela mais uma vez renovada dor da eterna surra do destino.
Só queria chegar em casa. E precisava muito disso. O metrô, insuportável. Interessante: nós suportamos o insuportável. E um metrô insuportável é das bobagens mais ínfimas. Que viesse o ônibus! E ele veio. Veio engrossar a lista de ingredientes que, misturados numa determinada cabeça e em uma determinada situação, fazem a gente perder o contato com o sofrimento humano. Que acotovelassem a pobre senhorinha, que a acotovelassem contra mim, que me acotovelassem contra a grávida que dividia seu assento com meus joelhos. Que diferença faria nesse bolo mal nutrido e irremediavelmente chamuscado que os homens insistem em confeitar?
Cheguei em casa e as flores de maio estavam murchas. E eu, que por semanas a fio havia me sentido triste por não poder dividir com minha dileta a alegria do paroxismo daquelas flores, agora já não me sentia nem alegre nem triste. Sentia apenas a real possibilidade do dia em que eu abraçaria um cavalo e choraria.
Mas os vivos continuam mortos, e os mortos continuam vivos.


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

:-o

Bem sincero, hein!? Benza deus...

E as imagens e as reflexões e o ritmo continuam lindos...

Parabéns por tudo.

junho 20, 2007 3:09 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Bonitamente cinzento.

junho 20, 2007 4:51 PM  

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