Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, junho 05, 2007

O dia que não veio

"Wise men say only fools rush in
But I can't help
falling in love with you."
(
G. WEISS / H. PERETTI / L. CREATORE)


Naquela vila inglesa há uma casinha de dois quartos. Lugar tranqüilo, bem localizado e bem arborizado. Até pareceria mentira. Os quartos são grandes, uma cama gigante cabe em qualquer um deles sem prejudicar movimentos bem folgados e espaçosos. Da janela do quarto da frente se vê a vila, com a rua lá fora de um lado, e o pomar e o pequeno parquinho pras crianças do outro, no fundo da vila. No piso debaixo quase a mesma disposição: a sala fazendo o espaço de um dos quartos, a cozinha – americana – o espaço do outro, e um lavabo usando o mesmo encanamento do belo banheiro que acompanha os quartos. Um sofá em ele num dos cantos e dois pufes jogados é todo o necessário pra manter a sala espaçosa e harmoniosa. Na cozinha uma mesa de seis lugares... Além do balcão, onde dois pares de pessoas podem comer e beber e papear tranqüilamente, sentados naqueles banquinhos estofados e em estilo clássico. E debaixo disso – do quarto da frente e da sala –, a garagem pra dois carros, onde em um dos lados vai muito bem um belo sofá de cinco, seis lugares. E atrás da garagem – debaixo do quarto do fundo e da cozinha –, a lavanderia e mais um lavabo, e o resto do espaço pronto pra virar qualquer coisa que a imaginação ou a necessidade possam conceber.
Um pobre-diabo lá mora sozinho, povoando a cama, os pufes, os banquinhos e o sofá da garagem e tudo o mais com sua amarga imaginação de dias mediocremente felizes, com poucas porém importantes e verdadeiras pessoas, filhos – talvez – cacheados e sorridentes, cheios de olhos amendoados e curiosos. Trabalha meio período, não ganha muito mas está satisfeito. Tem tempo de preparar o café e fazer a janta. E também surpresas, com certa freqüência, pros seus entes e amigos que, também com freqüência, aparecem. E vive disso e pra isso. Passa ao menos um final de semana por mês viajando, e cada livro que lê é com o prazer de quem vive o último dia pra, não obstante, adormecer pensando nas frutas da manhã seguinte. A casa é alugada, mas satisfaz plenamente a idéia de lar que seus sonhos sonharam. E agradecido pela vida besta que leva, deitado na rede no quarto da frente, olha a parede com algumas das fotos preto-e-branco que tem feito ao longo do tempo.

***

Naquele pensionato, quarto apertado, está deitado um homem resignado, pensando em seu próprio suor, que mal paga as próprias contas e a própria cachaça. Há uma pia num dos cantos, que toda manhã usa pra escovar os dentes e se olhar no pequeno espelho na parede. Tem banheiro próprio – ao menos –, e depois do monótono banho do dia-a-dia, se veste e olha novamente pro espelho, e sente calafrios por sua irremediável vida. Pode mudar – e há de –, mas seus sonhos, ceifados, de certa forma o impedem. E caminhando pro ponto de ônibus, sente pena de seus pares, que com ele caminham de seus próprios nadas pra lugares nenhuns. Sente pena por serem tão parecidos com ele próprio: todos deslocados de um sonho que um dia talvez tenha sido possível.
Esse homem é o fantasma que habita a modesta casinha daquela vila inglesa. Mas não a mal assombra. Apenas sobe e desce suas escadas, observando a miséria humana em que vive a suposta família que a ocupa, com suas mesquinharias e móveis. Não há espaço pro sofá na garagem, nem pra imaginação na lavanderia. A mesa da cozinha mal é usada, e o café da manhã – pra quem toma –, é na rua, cada um por si.
E enquanto seu miserável fantasma se dói da dor da espectral família alheia, seu corpo repousa, com frio, na cama da qual se levantará, no dia seguinte do Tempo, pra escovar os dentes se olhando num pequeno espelho de moldura laranja.
O quarto de alguém vazio, a casa vazia de alguém.


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Muito foda.
Minha leitura preguiçosa sente que há aqui uns cem números de qualidades que devem estar presentes num bom texto e, principalmente, numa boa pessoa.

Abraço!

junho 06, 2007 9:13 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Scary good.

junho 07, 2007 12:14 AM  

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