Confraternização

(Na geladeira)

sábado, julho 05, 2008

Mudança: A Nova Velha História*

Adeus, cabras, cabritos, bodes, bois e bezerros. Aprendi muito com vocês. Seus grunhidos foram motes para excelentes especulações, divagações e vãs filosofias em geral. Com o tempo, fui capaz de reconhecer suas diferentes formas de expressar, que variavam de acordo com a maturidade de cada um: os bezerrinhos novinhos e seus berros, estridentes, agoniados, como os de um bebê, que precisa e quer, e por isso pede e exige, do mesmo modo que fazem os jovens, cheios de vontades e coisas por fazer e conseguir. Tão diferente das cabras mais velhas, que berram com aquele tom de resignação, uma para a outra, como que numa monótona conversa de idosos, sem pressa ou grandes e urgentes necessidades; provavelmente estão a considerar o tempo, ou fazendo vagos e vagarosos ensinamentos aos mais recentes na pastagem de sempre.
Impossível não fazer estas comparações; associá-los a pessoas tão humanas.
Os bois ruminam. Bufam naturalmente bravos, arredios; ora desconfiados, ora indiferentes. Mas, não me estenderei mais sobre os bois, pois todos sabem quão filosóficos estes são, e muitos outros autores já o demonstraram com muito mais propriedade. Este é um texto de despedida; e agora que já dei o devido adeus aos meus amigos caprinos e bovinos, devo continuar com minha tarefa.
Adeus, minhas inumeráveis e estrondosas vizinhas! Como foi penosa a aprendizagem de conviver com as lascivas e altíssimas melodias que com tanto afinco passavam o dia inteiro a escutar! Nunca deixei de admirar uma relação assim tão íntima com a música. Afinal, nem todos se interessam por conversar com nossa outra vizinhança, as camaradas cabras. E vizinhança não se escolhe, não é mesmo? Aceitamos como a mesma alegria que recebemos a visita indesejada de parentes indesejados. A vizinhança é essa família a qual a vida nos impõe, como tantas outras coisas, e a qual pertencemos sem desejar pertencer. Em suma, agradeço a importantíssima lição de tolerância a qual estive pacientemente submetido.
E tudo isso devo à fantástica arquitetura erigida pelo proprietário de minha breve residência, provavelmente inspirada numa ideologia comunista de compartilhar e dividir. Este teve o cuidado de construir as casas de modo que todos levassem uma vida em comum, compartilhando de cada ruído que o vizinho ao lado fizesse, desde um tilintar de chaves a assuntos muito particulares - que os mais pudicos achariam mesmo obscenos. Adeus, meu caro imprudente proprietário! Não mais o incomodarei com minha absurda exigência de contar com água para o básico de uma existência digna; não mais questionarei sua tranquíla e honesta irresponsabilidade! Graças a ti, mudo-me mais uma vez para outra morada, nesse inexorável movimento de estar sempre a recomeçar nossa vidinha miúda; nela mal temos tempo de nos acostumar e pretender alguma estabilidade; tudo está sempre a acontecer: é assim que é.
Por isso me despeço, comovido, respeitoso, como quem nota um frame do devir de sua tropicante trajetória. Junto minhas coisinhas e entrego a casa a seus moradores originais, aranhas, formigas, traças e escorpiões - insetos de tanta garra e perseverança. Por isso faço esse registro: já morei em tantas casas, é possível que um dia não me lembre mais de nossos instantes, como aquele véu de água que suavemente caía quando chovia forte, sem goteiras, apenas refrescância, das que fazem a gente imaginar coisas de olhos fechados; da meia-luz refletida nas paredes, tão boa para se ter calma e esperar ao balanço de uma rede...
Adeus, ó lugar - você existiu!

Bruno*

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

achei engraçado e comovente ao mesmo tempo. hheheehe

vc está escrevendo com uma "pegada" bem diferente.
tem tanto sentimento e leveza ao mesmo tempo q me soa filosófico...
ñ sei exlicar direito.
sei lá, vc deve ter entendido.

abs

^^

julho 15, 2008 11:53 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Concordo com o Fred. O texto possui características filosóficas, sentimentais, sensíveis, singelas, enfim, várias características. É um texto de despedida, mas não possui algum tipo de sentimento melancólico, na verdade, é repleto de serenidade, aceitação e por incrível que pareça - pelo menos nas minhas análises dos textos do Bruno - otimismo, no sentido desta aceitação positiva da impermanência das coisas e da multiplicidade de experiências que tal caráter transitório da vida, das coisas e lugares pode nos legar. Excelentes textos. Como sempre, os seus melhores tratam das coisas cotidianas.

Tenho uma pergunta: Este é um texto de despedida, esta é somente da sua moradia ou de Pipa?

Saudades!

Abração.

Adriano.

julho 18, 2008 7:52 PM  

Postar um comentário

<< Home