Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, maio 29, 2007

Servindo um inalador

A farmácia tem mais funcionários que consumidores. A simpatia – que talvez nunca tenha existido – foi substituída por aquele atendimento robotizado do “Posso ajudá-lo, senhor?”. Mas que cacete! Tudo bem, eu tenho cabelos brancos, mas hoje em dia quem não tem?! E os meus, se proliferam, é muito por essa estandardização das relações cotidianas baseada em manuais de padrão de qualidade em atendimento, essa bosta de vaca louca que atiraram no ventilador do mundo e que parece ter caído em cheio nas grandes redes de qualquer coisa estabelecidas na cidade de São Paulo. E fazem mau juízo daqueles que freqüentam os botecos da vida, que são dos poucos refúgios onde podemos nos sentir gente em meio à gente. Eu só precisava de soro fisiológico, pra fazer inalação. Peguei, fui ao caixa. Uma senhora pequenina e corcundíssima pagava sua conta – o tamanho da nota era de fazer qualquer um doente. A funcionária dizia: “A senhora acaba de economizar vinte e nove reais e oitenta e seis centavos”. Meu Senhor! Isso é coisa que se diga?! E desse jeito?! Mas era simpática com a velhinha, a moça do caixa. E a senhora, muito contente com o atendimento – e com a vantajosíssima economia – desejou bom trabalho, boa semana, bons fluidos... tudo de bom pra funcionária. Então, eu sozinho na fila, ela sozinha no caixa, ouço: “Próximo cliente, por favor”. Olho pra trás, pros lados, pra frente. Era como se estivéssemos num mundo à parte, e ainda assim ela parecia um computador sorridente. Mas também há a dor de quem está do lado de dentro, sendo forçado a se portar como um computador. E bonita, a moça. No boteco, derrubaria dois cabelos brancos com um gole só.

***

A senhorinha vai pra casa, alimentar suas hipocondrias, liga o rádio numa emissora AM qualquer, ouve seu programa favorito – sobre “histórias da vida” – e nele acredita. Vinte e nove e oitenta e seis... Sorri feliz e adormece. E assim o Brasil segue em frente, tudo em ordem, todo progresso.
A moça do caixa vai pra casa – sem parar no boteco –, toma seu chocolate quente enquanto assiste à novela, e sonha em se casar. Mas – pensa – os homens estão todos nos botecos, cachaçando com a desculpa de se esquentarem. Então dorme cedo, que amanhã de manhã tem faculdade. É preciso sair dessa vida. Mas dessa pra qual? É preciso.
E eu, com meus cabelos brancos, volto pra casa. Ponho o soro de lado. Ponho uma dose no inalador, e me escuso – ao menos por essa anestesiada fração de tempo – desse enorme fardo na vida que é pensar.



Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Meu senhor! Sensacional! A melhor crônica sua até agora na minha opinião, muito provavelmente.

Não queria fazer nenhum comentário além dos elogios, para não estragar. Mas, aí vai: inusitadíssimo. Essas imagens que você constrói, do tipo "tacar bosta de vaca no ventilador do mundo", ou o mundo à parte do computador sorridente, que lembra muito uma cena de um filme do Jim Carrey, o Mentiroso, são incríveis. Incrível também, é como uma ´palvrão´ bem empregado soa bem! Assim como o tom cheio de humor e leve indignação; tudo muito cheio de lirismo e prosaismo.
E pra fechar, aquela segunda parte, uma sacada narrativa e tanto: destruidor.

Valeu, muito bom mesmo. (Isso aqui tá melhor que a Folha.)

Abraços!

maio 30, 2007 9:14 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Mas, bah!!! Não é que eu também apreciei muito essa sua crônica?! Pois é...só não digo que foi das melhores porque, confesso, não li muitas das outras que você escreveu!
Mas, apreciei!!

E não sei se isso tá melhor que folha, não!! Não leio a folha...

Abraço e sorte em São Paulo!!

junho 01, 2007 12:32 PM  

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