Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, maio 01, 2007

Luiza

Luiza brincando na gangorra. Dava gosto de ver. Ela, que tinha nascido feia, feiinha, agora, ali na gangorra, com seus três aninhos inteligentíssimos, seus cabelos encaracolados, uma lindeza de criança. Aqueles olhos grandes que só. Aquele sorriso gostoso que só... que só ela não sabia que perderia. Uma lindeza. Uma imagem pra todo o sempre. Luiza cresceu. Sempre boa aluna, sempre boa profissional, sempre boa pessoa. Sempre só. Luiza muito seletiva com as companhias. Três ou quatro amigos, e não queria mais. Luiza carinhosa como ninguém. Luiza madrinha de casamento do Pedro, amizade recente mas muito forte. Luiza madrinha da Ana Luiza, filha da Ana Teresa, amiga de infância. E Luiza sempre só. Luiza viajada, cheia de histórias e humor. Luiza tranqüila, ótima companhia pra uma garrafa de vinho num dia de frio. Luiza bêbada, ótima companhia pra um almoço – de preferência na casa dela. Luiza, Luiza... sempre só. Mas sempre bem acompanhada, a danada!

***

E lá está Ana Luiza, com seus três aninhos. A madrinha, sentada num banco, lê um livro e vê a afilhada gira-girando, num domingo sossegado. Aquela imagem a incomoda um pouco. Não consegue se explicar bem, mas parece que usa um implante da melhor amiga. Um implante que poderia substituir por si mesma. E vê Ana Luiza se transformando numa espécie de cópia dela mesma, Luiza. Mas, Luiza muito focada na própria vida. Lendo o livro desfez aquela nuvem, e bola pra frente. Ana Luiza cresceu. Sempre boa aluna, sempre ótima companheira. Carinhosa como Luiza, mas fechada como nem Luiza havia sido. Numa quinta-feira Luiza acordou se sentindo estranha, era o dia da mudança de uma nova empresa pro prédio onde trabalhava. Trabalhou tanto naquela manhã que a nuvem se desfez. Foi almoçar. O elevador parou no tal andar onde a tal empresa se havia instalado. Ela sozinha. Entra um rapaz sorrindo, a cumprimenta e, segundos de silêncio depois, pergunta sobre onde comer por ali, bairro a ele novo e diferente. Algo nele a fazia se sentir à vontade. Seria a cadência das palavras? O tom da voz? O jeito charmosamente simples de pedir aquela dica boba? Convidou-o a acompanhá-la. Quase não conversaram à mesa. Era da natureza de Luiza não falar demais. Voltou ao trabalho e percebeu que não se lembrava do nome do moço. Percebeu que estava, de alguma forma, encantada. No dia seguinte, sexta-feira, almoçaram juntos de novo. E naquele sábado, num banco um livro fechado, e Luiza gira-girando com a afilhada.

– Madrinha, tá feliz?

– Você não sente falta de uma amiguinha?

Os olhinhos de Ana Luiza brilharam. Os de Luiza também.

Almoços foram, almoços vieram. Ana Luiza crescia. A barriga da mulher de Pedro também. Luiza pensava.

Luiza sempre cautelosa, convidou depois de algumas semanas o rapaz pra jantar. Só Ana Luiza sabia, sem saber. O rapaz estava pra convidá-la também, mas era quase a versão masculina de Luiza. Muito seletivo. E como se gostavam! Na segunda-feira seguinte, o mesmo quase profissionalismo de sempre, o mesmo almoço tranqüilo de sempre. Quatro olhos um tanto mais brilhantes, mas o mesmo pouco assunto à mesa. Não eram só Ana Luiza e a barriga da mulher de Pedro que cresciam. O segundo jantar demorava, demorava a vir. Três semanas de expectativa mútua. E Luiza, na manhã seguinte, sorrindo feito gangorra, feito gira-gira. Ana Luiza nunca sorrira tanto na companhia da madrinha. Então nasceu Luiz, o filho de Pedro. Ana Luiza apertava o bebê que dava gosto. O menino tinha três semanas quando, num domingo sem porquê, um gira-gira girando sozinho, um livro fechado num banco, Ana Luiza sentada ao lado de Luiza, passa a mão em sua barriga, num carinho de fazer lágrimas:

– Madrinha, e você?

Luiza engole as lágrimas, sorri. Ana Luiza também sorri. Mas sabe, sem saber.

O tal rapaz, que tinha sido promovido na semana do nascimento de Luiz, foi mandado pra Berlim, gerenciar um projeto de três meses.

***

Luiz e Tereza, irmã de Ana Luiza, brincando numa gangorra. No banco mais próximo, Luiza lendo um livro. E Ana Luiza de olho nas duas crianças.

***

A melhor amiga de Ana Luiza, grávida de dois meses apenas, deu a ela carta branca pra escolher o nome da criança que viria.

– Se for menina, Luiza... se for menino, Silvio.

– Silvio? Por quê?



Algoz

3 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Isso me lembra um dia frio, com céu azul e sol, e um livro de companhia... Saudade.
Beijos,
Malvina.

maio 01, 2007 11:39 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Luiza, da crônica pro conto, a vida num tom azul...

;-)

maio 02, 2007 4:03 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Bonito. Fala de como as coisas se repetem, mesmo sendo as pessoas, em princípio, diferentes. Será?

maio 03, 2007 3:34 PM  

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