Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, abril 17, 2007

A melhor amiga do Homem

Tomava um café na companhia de um casal de amigos e de algumas abelhas. As abelhas, seres de uma existência das mais simples, foram gradativamente cercando o copo da moça. A moça, ser de uma existência das mais humanas, foi gradativamente perdendo a compostura. Primeiro fez caras, depois bocas. Até perceber (uma vez mais em seus mais de vinte anos) que nenhuma das duas coisas demovia as abelhas – que não se demovem por nenhuma expressão facial humana, indecifráveis a seus olhos de caleidoscópio. E tendo lembrado desse fato óbvio, se viu obrigada a fazer dedos, depositando, por fim, seu copo sobre a mesa. E se levantou, arrepiada, sua mão e sua cabeça ainda rodeadas por algumas abelhas. Outro agrupamento fazia corte ao meu copo, e eu as observava, um pouco contente até, de me sentir como um convidado de uma festa de abelhas: elas dançando em volta dos meus dedos, eu as assoprando quando se aproximavam de cair dentro do copo, elas arremetendo e voltando, e tudo de novo. Não estou fazendo nenhuma divisão sexista dos procedimentos humanos face às abelhas. O medo, o nojo, o pavor até, que o ser humano nutre por insetos em geral, não tem sexo, idade, cor, religião ou qualquer outro valor sócio-cultural. Outro dia, aliás, um homem feito, dos seus quarenta anos, fez quase o mesmo – de abandonar seu copo de café – por conta de apenas uma abelha. E respondeu ao meu jocoso sorriso que não era medo, ele apenas respeitava as abelhas, mas à distância. Então, quando as abelhas se rarefizeram no recinto, ela voltou a se sentar, guardando porém como que um minuto de silêncio, convertido em proposital e atenta inércia, antes de voltar a pegar o copo. E como estávamos sem assunto, mesmo antes do café, aproveitei pra fazer minha apologia das abelhas. Que não seria bem uma apologia, mas algo como um argumento de aceitação e convívio pacífico com os tais insetos. Porque as abelhas, de existência simples, mal sabem de nós, humanos. As abelhas não sabem que nós pensamos que elas gostam de açúcar. Porque elas não gostam somente de açúcar. Ou não se juntariam a mim também, que tomo café sem açúcar. Ou então, usando do fator surpresa, viriam a mim apenas, mergulhando em meu copo como num ataque kamikaze, que eu intitularia Coffee Handle. Mas elas não intitulariam nada. Elas, que na verdade não gostam apenas de açúcar porque, na verdade, não gostam de nada. As abelhas apenas vivem para exercerem suas funções naturais, sem gosto nem desgosto. E mais: se as abelhas soubessem de alguma coisa, qualquer que fosse, sobre nós, de fato nos picariam, como estamos sempre a prever que façam. Mas não. Porque não é, em primeira instância, para nos picar, que elas vivem. Sabem de pólen, de mel, de voar. E de outras coisas, certamente, que a nossos poderosíssimos cérebros serão sempre inauditas. As abelhas não nos assustam. Nós é que nos assustamos com elas.
Uma vez, há muito tempo, estava eu num ônibus, dormindo um sono profundo. Faltavam três pontos pro meu, e eu certamente teria passado. Mas umas vozes entraram súbita e agressivamente pelos meus ouvidos, e não aconteceu senão isso: acordei, e assustado. Logo entendi o que se passava: o motorista do ônibus e o de um carro estavam trocando impropérios agressivíssimos em baixo e mau tom, sobre o que tinham feito um ao outro, momentos antes, automobilisticamente. O motorista do carro – que lamentavelmente era um conhecido meu –, já estava, pra meu espanto, à janela do motorista do ônibus, ameaçando lançar, lá de fora, um soco, enquanto gritava ao outro que descesse, pra que ambos resolvessem aquilo tudo como faz um homem macho que se preze. O motorista do ônibus, tão macho quanto, clamava ao outro que desse a volta até a porta do coletivo e subisse. E entre os apelos preocupados dos idosos de dentro do ônibus e as muito zelosas buzinadas que tentavam também amenizar a confusão, esse infeliz conhecido deu as costas, e o motorista do ônibus seguiu caminho.
Ah, sim, as abelhas. Fico imaginando se as pobres abelhas soubessem de nós, com nossas misérias e violências. As que se aproximassem mais do nosso conceito de justiça certamente nos picariam feito pernilongos. E certamente, se não nos dizimassem ou ao menos expurgassem nossas maldades, com o tempo veríamos, nas casas das pessoas mais abonadas e poderosas, lindos jardins cheios de flores, onde inimigos acorrentados passariam o dia tomando café – sempre muito açucarado. E os cachorros passariam a caçar abelhas, na tentativa naturalmente frustrada de retomarem seu posto de melhores amigos do homem.


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Sem dúvida, meu caro, é o fim da picada. Para nós, que não somos abelhas, restam zangões como você, que teimam num zumzum para incomodar nossa ignorância. Abs,
André

abril 18, 2007 10:29 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Eeee, finalmente a crônica das abelhas! Texto muito elegante e um olhar aguçadíssimo.
O final, com sua sutil - ou não tanto assim - crítica ao desconcerto e a justiça dos homens, me faz pensar na possibilidade de uma descrença esperançosa, que ao mesmo não crê e alimenta uma "vontade de ordem".
Enfim, esperançoso e descrente, ou não, o que resta também pra mim é essa resignação quase melancólica.


Abraço...

abril 18, 2007 1:24 PM  

Postar um comentário

<< Home