Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, abril 24, 2007

Noite eterna

Ah!, meu caríssimo Rubem, também eu fui punido pela minha soberba. Ou terá sido apenas pela minha loucura? Há anos jurei que jamais poria as mãos num volante de automóvel novamente, depois de grave acidente sofrido, culpa senão de alguns poucos – enormes porém – buracos no asfalto, um que me fez desviar pra lá, outro que me fez perder o controle, um terceiro em que enfim me enfiei... e pra resumir a tragédia, jurei nunca mais pilotar. Se fosse contar cada ponto, cada pino, cada pequeno e cada grande detalhe de tudo que decorreu daquele acidente... não seria um conto, mas alguns milhões.
Não muito havia passado, já eu quebrava meu juramento. Sempre gostei de carros e de dirigir, então me enganava com o argumento de ficar só pela cidade. Duas ou três pessoas tentaram – em tempos diferentes – me fazer pegar a estrada de novo. Mas acabaram por insistir demais. Mandei-as às favas. Houve tempos em que, sem mais nem menos, perdia o gosto pelo volante. Ver carrões se tornava tão indiferente quanto beber um copo d’água, e pensar em dirigi-los chegava por vezes a dar preguiça. Tinha vontade de me dirigir à minha cama, e muitas vezes tardava em recobrar qualquer vontade de me levantar. Pra qualquer coisa.
Pois eis que a soberba – e/ou a loucura – entra em cena. Uma amiga foi fazendo com que me sentisse cada vez mais à vontade ao volante. Cada vez mais. Terá sido por nunca ter me incitado à estrada? Porque foi uma coisa muito branda. Foi acontecendo, acontecendo. E como muda que desponta no jardim em meio a todo o resto, e só vamos percebê-la quando já depois de um tanto, percebi um dia, enfim, que sonhava com a estrada. Percebi que sentia a estrada me chamando pra si, como que cósmica e secretamente. Percebi que queria a estrada. Queria novamente o tempo. O tempo da emoção. Mandava então às favas meu juramento, sem saber que seria punido. Resolvi comemorar, e tão somente, a decisão de aceitar, pra mim mesmo, o viver desse tesão do braço ondulando ao vento, da vida deslizando na velocidade da beleza. Peguei a estrada mais formosa, sentei o pé. Virava o velocímetro, fechei os olhos. Era um momento de gozo. E meus olhos se recusavam a abrir. Não os contestei.
Virei um anjinho.


Algoz

1 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Tão casual, crível e poético... que me assustei. Esperava tudo, menos o anjo no final. Bem bom, hein. Abs,

André

abril 25, 2007 3:26 PM  

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