Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Do valor das coisas

Era um desses feriados prolongados em que a cidade grande fica transitável e mesmo alguma agitação não impede um cidadão tranqüilo de se acotovelar pacificamente com seus pares em uma praça qualquer pra ouvir um bom chorinho ao sabor de um bolinho de bacalhau com cerveja.
Era uma moça de carnes vistosas em vestes incautas que procurava boa visão da música quando aqueles olhos a encontraram. Acabou por encontrar assento à direita deles, que a cobiçavam. Comprou uma cerveja. Pediu um cigarro, pediu o isqueiro. Fez silêncio. Pegou a segunda cerveja, o chorinho acabou. Aceitou mais um cigarro, o assunto começou. Meia hora de amenidades e gracejos depois, aceitou o que recusara no quinto dos minutos de conversa: deixar a praça por um bar duas ruas acima.
Era um bar de esquina bem pequeno e quase sujo em que uma moça tomava, na companhia de sua prima e de uma amiga, uma cerveja. Aqueles olhos atentos sobem a rua com sua recém conhecida cobiçada cabrocha. Chegam ao bar, cumprimentam uma amiga, cumprimentam a outra. A prima se apresenta, cumprimenta, muito prazer. Mas sua estada na mesa não dura duas garrafas: já a moça da praça se quer ir embora; já a mesa volta a ter apenas três mulheres; já as ruas se fazem caminho; já alguma palavra se faz convite; já uma porta se abre; já outra porta se abre; já cheiros viram paladar; já o dia amanhece; já as ruas se fazem outro caminho; já um sorriso maroto se faz à cama solitária de um cidadão tranqüilo.
Era um desses dias seguintes em que se tenta realizar algum feito que a falta de onipresença não permitiu no dia anterior. Há uma prima de amiga que se deseja, mas os obstáculos são alguns, e a impressão de reciprocidade é bastante leve, o suficiente pra não se arriscar com ímpeto ao intento. Toca o telefone num apartamento. Uma voz lânguida o atende e diz que não sabe se a prima vem. Acendem-se dois cigarros. Toca o telefone numa casa. Uma voz animada diz que vai. Um terceiro cigarro é aceso. Toca de volta o primeiro telefone. Uma voz tranqüila ouve que a prima vem; que então vão comer pra depois pensar no que fazer.
Era um apartamento de quarto e sala em que uma moça assistia, um tanto frustrada e amuada, seu amigo e sua prima se encostando escorregadiamente com a ajuda ardilosa da tequila. Retira-se e deita seu corpo desacompanhado na fria cama. E o calor que se faz no sofá não tarda a fazer os outros dois irem-se embora.
Era uma casa um tanto afastada, aconchegante e espaçosa, onde a chama recém acesa daqueles dois corpos se consumiu. Acordam com o sol ainda baixo, brincam um pouco mais na cama. Adormecem uma vez mais. Acordam novamente com o sol a já não fazer sombra. Com algum esforço, levantam-se. Vão tomar café da manhã, apesar de ser já hora de almoço. Conversam amenidades sem pressa, um rindo dos comportamentos do outro. A hora passa amena, já estão tomando uma cerveja, duas, três. Vão ao mercado comprar mais. Voltam. A espera pelo gelar da cerveja pede a cama. Então já é noite feita, as cervejas voltam a fazer palavras e sorrisos. Não, não há o despertar que quando acontece nos faz sonâmbulos. Mas há esse sossego desocupado do relógio do mundo.
Era uma mensagem de texto de telefone celular vinda de longe, com o carinhoso e despretensioso compartilhar de que Olinda era uma cidade merecedora de retorno. E a imagem de mesa vazia com garrafa e dois copos saltou aos pensamentos, e aquele aparelho de telefone se fazia sentir o tijolo doloroso que faltava à completitude de uma ponte sem a qual os caminhos faziam menos sentido. E, por alguns instantes, aquele quintal gostoso e aquela cerveja gelada e aquela mulher fogosa se quedaram numa zona de abstração e desimportância que só se desfez ao som de uma palavra qualquer incompreendida que a mulher disse, fazendo as coisas voltarem à quase normalidade de antes.
Era um sorriso leve em que um par de palavras escritas pintou um par de lágrimas com que a realidade fez borrando um sorriso amarelo.


Algoz