Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, agosto 21, 2007

Um pedaço a menos de mim

Dessa vez eu estava numa movimentada esquina da cidade grande.
Um homem, no canteiro central, olhava cabisbaixo pro chão. Tinha conseguido atravessar apenas a primeira larga da parte de pedaço daquela avenida que muda de nome pelo menos três vezes e hospeda trilhões de mundos por metro quadrado e segundo cúbico.
O semáforo alongava a angústia dos pedestres por dois minutos e meio, que é tempo suficiente pra que o carro que saiu da pole position percorra pelo menos dois quilômetros e meio – em CNTP, digo, em condições ideais de tráfego –, ou pra que uma pessoa que vem lá da outra esquina chegue nessa e, dependendo da velocidade dos calcanhares, dobre-a e suma no horizonte da metade do quarteirão, deixando talvez um gostinho no olhar como de se ter visto alguém quiçá conhecido mas que, dada a quantidade de carros passando e o número de voltas que os ponteiros dão no relógio, nunca se vai saber sequer quem era.
Eu estava na esquina.
Aquele homem criava em mim um sentimento de quase desespero. Eu era uma instância do super-ego de um homem que, não o tendo – o super-ego – ou não estando de posse dele no momento, transpirava sua melancolia e sua angústia – a já maldita angústia do semáforo que, feito pelo homem, prefere dar tempo aos automóveis que, feitos pelo homem, preferem a si mesmos –, transpirava sua melancolia e sua angústia de longe. Do longe do canteiro central da avenida. De repente me percebi torcendo pela luz vermelha – e aproveitei pra fazer disso um silencioso trocadilho quase triste-sorridente –, ainda sabendo que minha torcida valia tanto pra alterar o curso das luzes do semáforo quanto pra que meu time ganhasse um jogo qualquer contra qualqur adversário.
Eu ainda estava na esquina.
Uma moça, que descia a avenida pela mesma calçada em que eu angustiava pelo semáforo, chamou a atenção de meus sôfregos olhos. Mas não durou mais de três segundos meu olhar em sua direção, e já meu cristão-ego obrigava meu pescoço a direcionar meus olhos novamente ao homem que, de melancólico e angustiado, estava então angustiado e gesticulando... gritando? Sim, o homem gritava alguma palavra repetidamente, gesticulando risivelmente e angustiando-se mais a cada frustrada tentativa. Sua tentativa, logo percebi – por ser um obsevador privilegiado das duas cenas –, era exatamente a de tentar chamar a atenção da moça que a minha atenção havia chamado segundos antes.
Eu gelei na esquina.
A moça, que quase esbarrou o ombro em mim no momento exato em que eu percebi que aquelas personagens faziam parte da mesma cena – ou que, antes, deveriam (?) fazer – seguia seu caminho impávida. O homem se exasperava em quase convulsões. Eu quase me exasperava em inércia – pois não se aborda uma mulher sem porquê, e menos ainda num momento de abrupta constatação de coisa qualquer. Dobrou a esquina rumo a perder-se no horizonte da metade do quarteirão. Quando o pior aconteceu. Já o homem quase vencia a última pista quando, concentrado numas ancas que se focavam em seu retrovisor, o motorista do derradeiro carro inadvertidamente contraiu os dedos dos pés e, com um malicioso sorriso nos olhos, atropelou sem ver o homem angustiado.
Eu chorei na esquina.
O homem angustiado estava tão morto quanto Elvis. E a mulher, que cumpria um terço do quarteirão, ouvindo e vendo a comoção geral, voltou correndo. Era enfermeira. Conseguiu aos berros afastar os indevidos curiosos que cercavam de olhos o morto angustiado. Vi com esses meus olhos, que o asfalto há de comer, o momento em que a enfermeira viu que o angustiado morto era seu conhecido. Apagou no instante seguinte, e acordou já em casa.
O homem angustiado morreu atropelado por ser apaixonado por uma mulher que nem ouvia seus apelos. Depois a mulher criou na própria cabeça a voz do morto chamando seu nome. E criou a imagem de si mesma ignorando sistematicamente a tal voz. E o angustiado, que ela nem queria nem desqueria, virou um fantasma.
Atravessei a rua, na esquina tomada pelo caos, e segui marejado meu caminho.


Algoz

1 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Fudido. É o caos do homem e nas coisas do homem: angústia. Muita angústia.

E gostei especialmente do "cristão-ego." Tenaz.

...

agosto 22, 2007 2:20 PM  

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