Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, agosto 14, 2007

Encontros

Todos os dias fazendo as mesmas coisas: levantando à mesma hora, repetindo o mesmo escovar de dentes, acordando ao mesmo esfregar do sabonete, dançando o mesmo movimento do rodo, brincando o mesmo secar da toalha, comendo o mesmo ralo café da manhã, virando o mesmo molho de chaves, respirando fundo ao mesmo sujo muro do outro lado da rua, sorrindo a mesma obrigação social à vizinha que todos os dias desperdiça a água da galáxia pra empurrar o charme das folhas caídas pro bueiro, se inquietando ao se aproximar da esquina de onde o velho tarado a dá bom dia com olhos de hiena, ajustando os passos aos ponteiros do relógio pra não perder o ônibus, sorrindo um misto de intenção e recato ao cobrador atencioso e cheiroso, sentando suas charmosas ancas o mais perto possível da catraca, tentando a cada dia ignorar as hienices do porteiro do prédio que fica de frente com o ponto de onde desce do coletivo, imaginando tudo que pode acontecer pelos trezentos e sessenta e cinco dias vindouros durante os doze quarteirões de caminhada até o escritório onde trabalha, mecanizando-se cada vez mais no percurso feito sempre pelas mesmas calçadas e faixas de pedestres, parando sempre na mesma padaria e comendo sempre o mesmo saído do forno pão na chapa, ingerindo sua dose de extra-ânimo necessária à labuta do mesmo recém passado café, revezando os sempre mesmos ascensoristas de acordo com o elevador que primeiro ao andar térreo chega, cumprimentando em silêncio as sempre diferentes pessoas da desordem do dia atropelante da selva de pedra, gastando seu cérebro enquanto suas mãos desperdiçam os cabelos cacheados do amor que nem mais existe, fazendo a pausa quotidiana da ingestão de alimentos como quem tenta parar o Cosmos ao mesmo tempo em que precisa de todos os relógios do mundo, voltando aos carinhos guilhotinados suspensos pela voz indiferente de alguém que apenas pede mais concentração enquanto cobre todos de ordens a serem cumpridas ontem, suspirando o mesmo alívio pelo corpo esgotado enfim liberto à espera do elevador de cada dia, olhando sonhadora o céu a uma vez mais e sempre despedir o dia enquanto a noite sorrateiramente se aproxima pelo outro lado trazendo já sua própria mesa com todos os penduricalhos pomposos e imagens tristes que o escritório das sombras [quase] sempre tem, voltando pra casa com mais ou menos os mesmos percalços e leves momentos de descontração de todas as manhãs e de todas as noites, tirando os sapatos e o sutiã e os talheres da gaveta e os restos de qualquer coisa da geladeira, soltando seu corpo já seminu no sofá, ligando o aparelho de som com o controle remoto, acordando com o próprio cochilo algum tempo depois, indo cambaleante pro quarto, escovando os dentes no rápido banho tomado apenas pra não dormir de todo suja, deitando finalmente na larga cama o corpo enfim-finalmente liberto, e ficando afinal a sos com sua mente uma vez mais inquieta pelas (dis)funções dos movimentos de rotação e translação do planeta; enquanto um cara qualquer toma sua latinha do dia numa mesa de calçada de uma padaria de esquina onde trilhões de mundos acontecem.
Mas eles hão de não se encontrar.


Algoz

3 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Brilhante.

agosto 15, 2007 2:12 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Perdi o fôlego.

agosto 17, 2007 11:35 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Fiquei com medo da minha realidade........mesmo já sabendo de sua medíocre existencia....Abençoados ou Bestas aqueles que conseguem a colocar em palavras lidas......

agosto 29, 2007 5:16 PM  

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