Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, abril 10, 2007

Piada séria

Agora a Cegonha é morta. Nascemos de trepadas lascivas, selvagens, quase canibais, televisionáveis até. E nos ofendemos, verbal e fisicamente, enquanto fazemos isso. O carinho que temos é por nossas vestes, nosso amor é pelo dinheiro, sentimos saudades de nossas televisões. Sobretudo sentimos saudades de uma televisão, qualquer. Fazemos sexo por carência. Não sabemos demonstrar nem receber afeto. Não temos respeito, não temos cadência. E ainda não aprendemos as enormes diferenças entre afeto e afetação. Criticamos a afetação alheia, mas somos tanto quanto ou mais afetados. E dessa afetação vazia de afeto surgem situações das mais desnecessariamente dolorosas. Chicletamos nossos parceiros com nhenhenhéns – coisa da maior imbecilidade e inutilidade – e, quando nos enjoamos, não deles, mas de nós mesmos – coisa que ainda o mais estulto sempre acabará por fazer, mais cedo ou muito tarde –, sentimos náusea, não de nós mesmos, mas deles. E passamos, então, da falcatrua do paraíso (inexistente) ao mais real e palpável inferno: o inferno a dois. Oh, afeto, cadê você? Ninguém viu. Nossos olhos, juntamente com todos os nossos sentidos, chupados por telas. Com o nosso mais complacente consentimento. Vivemos numa eterna hora das oito. Acreditamos em Fátima e em Glória, apesar da vida, que nasce e morre antes e depois das oito, sem mistérios nem louros, sem olhos, sem dentes e com muito suor e sangue. Há talvez algum brilho, mas apenas nos olhos daqueles inveterados otimistas – não os chamarei tolos –, aqueles da eterna hora das oito horas. Hora aliás em que cessa qualquer nascimento ou morte. Hora em que a vida apenas é, em suspensão de qualquer ato ou fato inerente à si própria, vida. A vida, apenas. É um brilho fosco – com o perdão do paradoxo –, reflexo do reflexo do reflexo do infinito. Seria tempo de absoluta depuração, mas Drummond também é morto, e ousamos que mesmo em seu tempo de vivo, já não houvesse mais depuração que desse conta dessa conta. São tantos zeros. Tantos zeros. À esquerda, à direita. Sobretudo acima. Zero sobre zero: a hora dos ocos em que nos deixamos transformar. Ao ponto de crermos como a mais absoluta das verdades que o amor é feito de intrigas, de atritos, de dor e sofrimento, de compras e bajulação, de desconfianças e vexames. Sobretudo de desrespeito. Nossos pênis viraram automóveis, nossas vaginas pancadões. E falando nisso, imaginamos nossos primeiros avós no coito. Seriam os homens da caverna tão toscos, que nos entrementes dos atos sexuais batessem em suas respectivas com tacapes? Não estamos propondo um breviário da História Sexual do ser humano no quesito “afeto versus violência”. Mas seria interessante pensarmos em quão bonito seria um homem das cavernas que, com algum carinho genuíno e despretensioso, fizesse nossas feministas engolirem lágrimas de... afeto? Não, não vamos pender pra suposições de que sejamos menos afetuosos que nossos avós mais distantes. Até porque o ser humano, pelo exato fato de ser humano, é, sempre foi e para sempre será um rude animal cujo cérebro só o faz melhor que os demais animais no quesito animosidade. Não sabemos a beleza de um simples encostar de ombros, de mãos pousadas com honestidade uma sobre outra. Não sabemos entender ou respeitar o olhar perdido do que se senta ao nosso lado, e que funde sua mão com a nossa em sinal de ternura pura. Não entendemos nem respeitamos seus pensamentos mais profundos e remotos. Não sabemos louvar os abismos dos segredos alheios, não sabemos o silêncio. Amamos com tanto desprezo, com tanto ódio até, que trepamos como atores pornô. A Cegonha é morta. E a nós, sem fábulas nem criatividade, nos resta isso: a beleza suprema dos amores brutos, nossa violência mais crua, e nossa destreza em sermos cruéis.

***

Um corpo desliza, no sofá, até estar com a cabeça no colo do outro. A orelha, ao encostar na coxa, encosta no controle remoto e muda o canal num segundo muito importante. A coxa dá um safanão respeitável na tal cabeça, que volta quase à altura em que antes se encontrava.
– Porra, Amor! Justo agora!
– Caralho, Tchutchuco, seu cavalo!


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Hahaha! Proveitoso e divertido fluxo, em tom de manifesto lírico, sobre amor, sexo, afeto, televisão, imbecilidade etc.
E uma coisa interessante: tenho visto o pessoal reivindicar mais seriedade, ultimamente. Eu gosto de seriedade. Gosto muito. Mas que tipo de seriedade é essa que o pessoal tanto fala? Uma seriedade dos atos e sentimentos, ou uma seriedade da literatura? Uma seriedade social, talvez. É que eu acho você bastante sério, sobretudo no seu humor. Com excessão, talvez, de alguma metalinguagem muito hermética; nelas outras coisas são mais importantes. Mas, enfim, gostei da sua piada séria sobre os nossos relacionamentos que são, esses sim, uma verdadeira piada! Uma piada triste e doentia.

* * * * * * * * * *

Haha, gostou do "porra, amor", né? A vida é assim lá fora...
E da divisão do texto... Tipo, a cena que vem depois foi a que gerou toda essa reflexão, né? Bacana. Acho que é isso que o Bosi chama de "evento", tipo, o mundo se abrindo para o entendimento diante de alguma observação do cotidiano. É diferente da epifania, se pans. Enfim, desculpe a viagem.

Abraço!

abril 11, 2007 11:22 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Muito bom.
Concordo com a pessoa acima sobre a sua seriedade. Saudades de e-mails e conversas sérias, ou nem tanto...

abril 19, 2007 9:25 PM  

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