Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, outubro 16, 2007

Ressentimentos

Era um domingo. Eu sabia e respeitava: os não-solteiros que um dia passaram por nossa cama não devem ter seus sagrados temporários túmulos perturbados entre as dezessete da sexta-feira e as dez da segunda. Sempre vi nisso das maiores bobagens, mas o respeito, entre outras coisas, é isso: não tentar moldar o outro à própria imagem e semelhança. Eu, por mim, nunca tinha me esquivado de telefonemas – que não foram poucos – ou de visitas – raríssimas, é verdade.
Era um domingo. Eu tinha um evento pra ir, com meus amigos e amigas, e não havia qualquer intenção sexual de minha parte em dividir aquele apenas socialmente constrangedor fato: sobrava um ingresso. Sobrassem dois, e tudo seria ao menos menos constrangedor: eu diria "Olá, tenho dois convites sobrando pra tá tá tá, vocês não querem aproveitar?", e a recusa – certa, ao que muito me parece – se daria de forma menos tensa. Mas não.
Quantas vezes não repensei o que ia fazendo, com todos os números já discados e na iminência do ato constrangedor, antes de realizá-lo de fato? Muitas. Mas há de considerar, mesmo aquele que me reprovar, que um ingresso – não barato – pra um evento que certamente não se repetiria em menos de dois anos – pra ser ameno – não era coisa pra simplesmente se guardar no bolso e sorrir, contabilizados o prejuízo monetário e a tristeza de uma pessoa a menos agraciada pelo tal evento – que veio a ser deliciosamente agradável. Mas não.
Toca uma vez o telefone, toca a segunda vez, ela atende. Começo já pedindo desculpas por perturbar as conveniências. Pergunto se ela conhece tá tá tá, explico que há um ingresso sobrando... "Não conheço, e você sabe que ainda que eu conhecesse, não iria..." Há uma tentativa mínima, minimíssima, de se manter certa polidez. Em vão. Enfatizo, honesta e sem-graçamente, minhas desculpas pela inconveniência. Desligo. E todo um mundo de mim desaba.
Toca em mim uma sirene de irreversível adeus. Sem muito pensar – que não era de então que isso se fazia uma inevitabilidade –, troco, infeliz-tardiamente, o carinhoso apelido que em meu aparelho de telefone vinculava tal importantíssima pessoa de minha errante vida a três números, pelo austero e insensível nome de batismo: eu perdia o último vínculo afetivo do que se chama a 'vida amorosa'. Finalmente – e como já então havia muito eu mesmo sabia um dia iria acontecer – sobravam-me os amigos, apenasmente. Longe de ser isso pouco: mas tão longe quanto de ser um alívio.
Cinco minutos depois consegui, contra minhas próprias expectativas, falar com aquela bonita moça querida, quase-amiga íntima-quase daquele caríssimo amigo que na tal noite estaria presentíssimo. Era em cima da hora, mas ela aceitou. Não quis questionar – naquele momento –, a diferença de atitude. Apenas me contentei – e me emocionei – com as boas novas, e deixei de pensar no que considerava das piores possíveis atitudes que esse infeliz do ser humano toma, nos simples e belos momentos da vida, por fazer deles grandes monstros de mil cabeças que abalam as merdinhas de estruturas que ele próprio – o pobre ser-humano – cria pra se proteger – a si e às convenções que o agradem – do que possa, de alguma substanciosamente bela forma, questionar tais efêmeras estruturas. Eu estava esfuziante com a futura presença de alguém agradável, então deixava pra depois tais tristes constatações. Mas elas viriam.
De meu triste repúdio, cheguei sem esforço a considerações ainda mais tristes. Se eu havia sido deixado de lado por uma ou duas mulheres, certamente seus motivos envolviam – pra além da falta de suposto suficiente sentimento – essa minha eterna pose de moleque, supostamente inapto a ser um pai de família socialmente respeitável. Triste mundo, eu pensei: "Vamos ver no que isso vai dar". Mas, imediatamente me remendando, postulei: "Eu não vou estar, aqui ou lá, pra ver nada disso. Nada." O que houvesse de ser, que fosse. Aquele menino Ricardo já havia dito: "Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo".
Mais tarde, naquele mesmo irreversível dia, recebi uma mensagem de pedido de desculpas pela suposta não-intencional grosseria. Desculpei em silêncio, e fui, indiferente a qualquer coisa que não fosse o tal evento, apreciá-lo. Mas por algum tempo estava claro que as amena-belas conclusões de Braga, eu deixava pra ele, apenas.


Algoz