Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, julho 24, 2007

De costas

O tempo estava uma merda. Meu estômago estava angustiado. Esses dois fatores, sem auxílio de mais qualquer, bastariam pra que eu matasse alguém e, ainda que fosse, de fato, preso – mas que dúvida! – ainda assim alegaria não ter cometido crime algum, posto que teria sido pela confluência de duas causas externas ao que minha mente pudesse controlar. “Meritíssimo, minhas mãos estavam, é verdade, de posse da arma encontrada na cena do crime. Sim, foram elas que fizeram aquilo tudo. Não me lembro bem... (...) ...enquanto o sangue escorria pelo chão. Mas nada premeditei. Foi um surto de meu estômago, num quarto dia de um período insuportável de mau tempo. Foi meu estômago, Meritíssimo. Perdão.”
O tempo estava uma merda. Meu estômago era uma angústia só. Cheguei no bar e já três garrafas tinham sido esvaziadas. Servi-me de um copo. O primeiro gole desceu queimando tudo. Minhas mãos tremiam de frio, minhas mãos tremiam de aflição. Quando o copo se esvaziou – que não fui eu! – pela primeira vez, já a cerveja descia bem. Mas o tempo continuava uma merda, e meu estômago daquele jeito. A vontade de comer passou, apesar de eu saber que se não comesse logo, a fome viria me acometer. O assunto me interessava, mas eu não ouvia as duas bocas amigas que se mexiam, sem som, uma de cada lado da mesa, enquanto meus olhos as olhavam sem enxergá-las. E enquanto um dos amigos tentava – mas sem forçar tanto a barra – me animar com piadinhas que eram metade seu jeito de ser, metade seu estado de momento, o outro sabia que eu não absorvia uma vírgula daqueles planos decisivos de mudança de vida que deveriam ser pensados por mim também. É uma atrocidade ter de pensar no futuro da vida – haveria um pensar no futuro da morte? –, quando a vida nos deixou com azia.
O tempo estava uma merda. Ouvi uma voz de mulher – eu estava de costas – e reconheci qualquer coisa. Meu coração quase vazou estômago adentro. Parou e me cumprimentou. Uma moça muito bonita. Como se diz, “meu número” (teria ela dito que eu era o número dela? – não, é certo que não). Mas eu não disse palavra: seu cumprimento era vazio de qualquer informalidade. Continuei conversando com meu copo, trêmulo, enquanto ela conversava com meus amigos. Mal vi seu rosto, como ela certamente mal viu o meu. Mas sei que era uma moça muito bonita, e ainda tenho a leve impressão de que nos conhecíamos, de algum outro tempo e lugar distantes. Distantes o suficiente pra que ela não se lembrasse de mim, e me cumprimentasse apenas por termos amigos em comum. Quando seu cigarro acabou, virou as costas e foi embora. Mas não era nada demais: a vida vive fazendo isso com a gente.
O tempo estava uma merda. Meu estômago... eu queria mesmo era enfiar o próprio braço goela abaixo e arrancar meu estômago fora. E matar alguém e ser preso e ir a julgamento e me defender assim: “Meritíssimo... fui eu, fui eu. Que eu queime no Inferno!” É, não seria bem uma defesa.
O tempo, um dia, veio a despiorar. O tempo, só.
Conta paga, fomos embora. E a leve impressão...


Algoz

3 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

A vida vive fazendo isso com a gente. E você ainda não se acostumou, porra?! Relaxa e canta - lá na Liberdade.
Paulo

julho 25, 2007 1:09 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Ah, esse braço goela abaixo seria uma bela solução posológica.

julho 25, 2007 5:46 PM  
Anonymous Anônimo disse...

(Huhauhauhauha!)
Interessantíssimo - graças a minha feliz condição de co-observador - ver na prosa a "imagem dos outros" feita por essas breves descrições de comportamento. Por enquanto, tem me parecido extremamente condizente.
Fora isso, achei quase triste, bonito e bem divertido.



É nóis.
;-)

julho 26, 2007 11:27 AM  

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