Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, julho 03, 2007

Cristo!

Frio brabo naquela noite. Ao invés de pegar o ônibus – que faz os últimos mais ou menos dois quilômetros antes de casa –, resolvi caminhar. Nada de menos acontecia, eu apenas caminhava. Era tarde. Já na segunda metade do caminho, um táxi parado ao lado de um orelhão, e o motorista conversando emocionadamente alterado:
– Se precisasse levar a Isabela na escola eu levava. Se precisasse buscar, eu buscava. Eu me sacrifiquei, e me sacrifiquei por você.
Continuei meu caminho. Não sem sentir a dor da piedade pela humanidade – eu incluso, sempre –, com suas angustiantes pequenezas, esses moinhos onde destroçamos de bom tudo que foi, é ou seria.
Do outro lado da rua, menos de cem metros depois, um casal conversava rindo dentro de outro carro. Se eram namorados, noivos, casados, amantes, amigos, não sei. Sei que riam enquanto conversavam, e faziam bem. Antes que um dos dois se transforme no taxista do outro lado da rua, melhor mesmo é rir. No fim da vida sempre vem a morte.
Incrível: mais cem metros, mais um casal. Ouvi um barulho e olhei. Dentro da garagem da casa, se abraçavam como eu senti – num relance apenas – que nunca mais voltaria a abraçar alguém. Desgosto. Mais outros cem metros, um senhor esperava, sozinho ao ponto de parecer o guardião de uma cidade fantasma, o ônibus que o levaria dali. E dentro dessa metáfora eu fui o forasteiro que, de passagem, nem ousou cumprimentá-lo. Só então voltei a caminhar por algum tempo sem ver alma. Até que, já bem perto de casa, passei por aquela casa onde dormem entre cinco e dez moradores de rua. É estranho pensar no termo “morador de rua”.
Mas como chegando em casa tomei um destilado de certa qualidade, pra compensar a caminhada de meia hora sem gorro – que meia hora sem gorro, pra quem tem gorro, é um absurdo; morar na rua não –, como tomei um destilado de certa qualidade, não posso pedir desculpas por essas bobagens que acabo de contar. Faço parte de cada solidão e de cada atrocidade por que passei em minha supostamente desnecessária caminhada numa noite fria pra diabo.
E se não posso me desculpar pelas bobagens, tampouco é necessário pensar qualquer reflexão a partir delas. Porque enquanto discussões e chamegos e solidões e tremedeiras acometiam meus pares, e também enquanto eu me esquentava sob o conforto de um teto – compartilhando deles apenas as solidões –, enquanto cada partícula do Cosmos conspirava em (des)favor da caótica ordem do Maior, os homens também pensavam bobagens. Pensavam na mulher que morreu atropelada pelo próprio carro, no policial que matou o próprio filho após confundi-lo com um bandido, no piloto de avião que perdeu um olho por conta de um pássaro que resolveu cometer suicídio jogando-se na turbina do avião. E nas sete novas maravilhas do mundo.
Ah!, os monumentos! Essas magníficas obras construídas por desgraçados pra reconhecimento e júbilo de homens que teriam sido insignificantes, não fossem seus nomes cravados nessas obras erigidas sobre os corpos dos antecedentes dos meus vizinhos moradores de rua.


Algoz

1 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Por isso eu digo que você é o Carlinhos Oliveira da ZN. Essa mistura de melancolia e gravidade com o mínimo, o pequeno, o insignificante. Um Rubem Braga durante o eclipse (?). O que importa: você tomou um destilado de certa qualidade (e não Xibocs). Abraços,
André

julho 06, 2007 10:26 AM  

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