Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, novembro 20, 2007

Mundos paralelos

Tinha sido um ano difícil. Ainda faltavam dois meses pra acabar – e não seriam menos difíceis que os outros dez –, mas agora era a hora de parar por dez dias, relaxar e curtir uma semana longe de todos os problemas profissionais. Tinha que voltar pronto pra matar mais dois leões por dia até as festas de fim de mundo – digo, de ano. Mas não ia pra algum paraíso achado no meio do Pacífico, ou pra qualquer uma das Chapadas brasileiras, tampouco pra algum vilarejo medieval e eternamente ajardinado do Velho Mundo. Não. E se conto aqui com tais opções, não devo ser tomado por delirante: nosso homem ganhava dinheiro negociando dinheiro, falando dinheiro, respirando dinheiro. Dinheiro não era, pra ele – como para a maioria das pessoas –, apenas a diferença entre viver e sobreviver: era um estilo de vida. Tinha seu diploma, um cargo com nome, uma empresa de que fazia parte. Mas não era, na prática, aquilo nem isso. Na prática, não era apenas um alto funcionário de uma cruzada ultracapitalista, nem um bandeirante do ramo da especulação-de-qualquer-coisa. Era, na prática, e simplesmente: rico. E não fosse o câncer, diagnosticado desenganadoramente no carnaval do ano seguinte, teria certamente se promovido – em coisa de dois ou três anos – a milionário. Mas agora era hora de esquecer as causas. Era uma quebra, em seu próprio frenético tempo, pra aproveitar as conseqüências. Las Vegas! Tinha tudo planejado. Começaria todos os dias, às seis da tarde, sem cartão de crédito, a jogar. E ficaria até que a Casa consumisse seus mil dólares diários, ou até que consumisse dela dez mil, ou até que alguma moça interesseira o convidasse pra consumi-la em um quarto não-tão-barato-assim qualquer. Eu disse interessante. E se viajava na classe executiva – não gostava de gastar dinheiro senão com dinheiro –, era somente pela volta: precisava dessa carta na manga, caso não conseguisse descansar durante a semana. E que dúvida!

***

Quatro décadas antes, fugidos de qualquer coisa – e/ou buscando sonhos mais realizáveis –, sai de alguma nação menos abonada da Europa uma inteira família. Como muitas outras, entra num navio e ruma pra América. Aporta, quase duas semanas depois, em terra de língua portuguesa.
Uma década depois, insatisfeito com as limitadas possibilidades dos sonhos dos pais, sobe um filho pra nova terra desconhecida, dessa vez de língua inglesa. Morto o pai, sobem atrás do desgarrado a mãe e dois irmãos. E falando português sobram dois, dos quais apenas um mantém certo contato com os duas vezes imigrantes. E desde o derradeiro reposicionamento no mapa-múndi, apenas dois encontros: menos de uma década depois, quando a mãe desceu por duas semanas; e disso quase duas décadas depois, quando o filho subiu por um mês. Agora, quase uma década sem encontros depois, recebe o filho um telefonema: tem duas semanas, no máximo, sua distante mãe. E lá está ele, dois ou três dias depois, sentado na sala de embarque do aeroporto. Chamam primeiro os passageiros da classe executiva. O filho, cuja mãe falecerá dali a três dias, absorto em seus questionamentos, observa. Entre os privilegiados passageiros está um rapaz dos seus trinta anos, bem vestido, com ar de vitória na vida. Vinte minutos depois estão todos – bem ou mal acomodados – na aeronave.

***

Começa o serviço de bordo. E no mesmo instante do mundo, dois homens, um na classe econômica, outro na executiva, pedem uma dose da mesma bebida. Uma tem oito anos de idade, a outra doze, talvez quinze. Mas são a mesma. E pedidas e tomadas por motivos radicalmente diferentes.


Algoz