Confraternização

(Na geladeira)

sexta-feira, setembro 29, 2006

Culpa original

Era uma sexta ou uma quinta, de noite. Ou ainda o sexto ano de nosso namoro...não sei exatamente. Sei apenas que passeávamos por um bosque. Pássaros, animais de toda a sorte e árvores, principalmente as árvores. Gravatá, Quixabeira, Jaborandi, Lelia-da-Bahia, muitas outras e a mais interessante de todas, Pau-Brasil. Nem todas estavam próximas umas das outras. O bosque era imenso.
Passeávamos durante aquele dia...não, acho que era uma noite enluarada, não me recordo...quando ela, de repente, sumiu. Eu olhava para o lado e somente ouvia os barulhos dos animais. O chirrear da Coruja, o chirriar do Grilo, o chocalhar da Cobra...Mas ela volta, de surpresa, com uma beleza assutadora, abraçando-me, beijando-me, manchando-me de vermelho...disse ser da tal árvore. Ficamos os dois manchados...
Sim, me lembro agora que passou um senhor por perto, nos viu, e nos deu um sermão...eu fiquei irritado. Além de estar manchado, tinha que ouvir sermão. Depois que o velho saiu, acabamos discutindo. No calor da discussão, ela me revelou que estava grávida!!!!
Choque!!!!
Éramos novos, não poderíamos arcar com tal responsabilidade. Amaldiçoei os dias que a conheci, disse que ela teria que retirar aquele filho. Ela se recusou. Eu respondi que ela morreria, então, no nascimento da criança, junto com esta! Não sem antes sentir as dores do parto! Se nós tivéssemos aquela criança, eu teria que acabar com minha juventude para trabalhar e dar sustento à uma família que eu não queria. Aquilo para mim foi como se fosse uma morte!
Meu peito foi se enchendo de raiva. Foi se inflamando de ódio. Com tamanho ódio na mente, puxei-a para fora daquele bosque. Apertava seu braço para que ficasse realmente machucado. E aqui que a história se tornou inacreditável.
Antes de sair do bosque, surpreso, olhei para o lado e vi um ser, um pequeno ser com asas brancas ao lado de um Pau-Brasil. Ele segurava uma espada flamejante. Naquela hora, não pude analisar o quão estranho era aquilo, estava possuído pelo ódio. Talvez tenha pensado que fosse uma alucinação, uma imaginação. Ou melhor, uma manifestação mental de meu ódio. Só sei que me aproximei daquele pequenino ser e peguei sua espada, não sem nenhuma resistência...assim que mordi suas asas, ele soltou fácil sua arma...Com aquela espada na mão, virei-me para ela, que se encolhia no pé da árvore e, pensando no meu futuro estragado por aquela mulher maldita, arranquei-lhe a cabeça!!! Esta voou por sobre meus ombros. Fiquei ainda mais estarrecido com o que aconteceu em seguida. No lugar da cabeça, talvez por causa dessa espada flamejante, começou a soltar fogo...uma grande labareda...e a mulher que amei um dia foi se transformando num cavalo. Saiu a galopar e a relinchar...

rodrigo lima silva

3 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Olá.
Imaginativo e simbólico, gostei da imaginação. Uma releitura da mula-sem-cabeça. Atrelou à uma estória moderna. O anjo criança e "despreparado" seriam uma manifestação de defesa da inocência? Parece q a culpa perdeu-se em meio ao ódio, à cegueira. o extraordinário se fez insignificante e mostrou-se fraco ante ao rompante do cara.

maluco e difícil de definir muitas coisas, se faltou algo é pq me faltam referências para interpretar.

abs

setembro 29, 2006 10:50 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Rodrigo,

Você disse para eu ficar atento ao título do texto, pois ele faria com que eu compreendesse melhor o mesmo. Culpa original, para mim se associa ao pecado original. Segundo a tradição judaico-cristã, foi Eva quem deixou-se convencer pela serpente e convenceu o homem a comer, junto com ela do fruto da árvore do conhecimento e desta forma, houve a queda do homem (ser humano). Tornamo-nos mortais, a partir daquele momento teríamos que conquistar as coisas com o suor de nossos rostos, a mulher passaria a sentir as dores do parto, etc. Para mim, o texto deu a idéia de um "Adão moderno", descontando toda a sua fúria na "Eva Moderna", coisa que não está relatada na Bíblia. A presença da mula-sem-cabeça foi algo que não pude compreender direito, a não ser que, como o Fred falou, este conto fosse uma releitura da lenda da mula-sem-cabeça. Não sei... Acho que meu comentário está um lixo... Não acredito que tenha conseguido captar muita coisa deste texto. Talvez seja melhor descrever o que senti ao lê-lo. Eu senti uma espécie de desconforto, achei o texto agressivo, violento até. Acho que prefiro coisas mais amenas.

Bem, acho que é isso.

Adriano.

setembro 29, 2006 2:05 PM  
Anonymous Anônimo disse...

Desde já agradeço aos dois comentários feitos até agora. Vou confessar que esse texto acabou se tornando o mais subjetivo, o mais simbólico de todos que eu fiz até agora. E o mais dependente de referências, também. Não sei até que grau isso é ruim ou isso é bom. Ess texto pode se tornar uma forma de eu medir esse tipo de coisa. Mas, vamos ao texto.
Realmente o título se refere eo pecado original descrito no livro bíblico Gênesis. Tudo nesse presente texto se desenrola com algumas referências à história de Adão e Eva ao comerem o fruto da árvore proibida. Como disse meu querido amigo, Adriano, realmente não se diz na história bíblica que Adão ficou furioso com Eva. E esse é um dos ponto que quero mostrar. O Adriano foi muito feliz ao se referir ao personagem-narrador de minha história como "Adão moderno". É justamente sobre esse homem moderno que falo no texto, principalmente o ligado diretamente à tradição judaico-critã. Mostro aqui como é o papel de nossa "Eva moderna" para o homem dessa tradição. Vejamos bem que eu, em nenhum momento, quero generalizar. Apenas estou me referindo ao homem que trata sua mulher como se ela fosse "a culpada original". Ao homem autoritário, machista, etc. E essa diferença crucial entre a minha história e a história bíblica diz muito o que quero dizer. Se esses mesmos que se dizem fiéis aos preceitos bíblicos parassem um pouco para pensar, as coisas poderiam ser diferentes. Muitos vão achar que isso que falo, essa luta contra o machismo é algo datado, que não faz parte do nosso presente. Eu afirmo que não. Um exame mais profundo da questão, uma observação mais cuidadosa revela a mim que ainda hoje existe muito machismo, mesmo que de forma muito sutil.
Muitas outras referências foram dadas no texto, que poderão ser discutidas num futuro.
Outra coisa que gostaria de comentar é o fato do mito da mula-sem-cabeça ter sido referido no presente texto. Essa referência se deu graças aos textos, comentários e intenções do Fred com seus textos que são releituras de verdade dos mitos brasileiros. E graças as conversas que tive com ele a respeito. Faço essa referência à mula-sem-cabeça em dedicação ao Fred e o seu resgate ao mito nacional.

Obrigado, novamente, pelos comentários e pela boa vontade em interpretar, comentar, debater os textos do blog.

Um abraço muito forte...

setembro 29, 2006 4:55 PM  

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