Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, março 13, 2007

Vegetal

O dia houve em que o mundo desabou sobre seus ombros, sob seus pés. A lassidão tomou conta de seu corpo e, mais e além, de sua mente. Tudo que pudesse ser considerado – ainda que minimamente – uma faísca de vida... perdeu sentido. Seus ávidos olhos, que antes projetavam as coisas com minutos de antecedência, e a muitos metros de distância, agora eram dois buracos preenchidos por matéria inútil... não tinham mais cor, brilho ou expressão... se enxergavam, era apenas por diferenciá-lo dos cegos. As trevas de tudo que não era físico o tinham tomado irreversivelmente. Continuou mantendo contato com os pouquíssimos e verdadeiros amigos que tinha, mas sempre mudo ou calado. Com seus pais e irmãos não era diferente. E com todos os outros familiares, ou só os cumprimentava, ou os ignorava por completo, chegando por vezes a até sair de casa quando alguns deles chegavam. Tentaram convencê-lo a fazer terapia. Em vão. Alguma vizinha beata o teria visitado e insinuado que seu problema seriam pendências com o divino. Dizem que depois desse dia nunca mais voltou. Ele teria soltado uma gargalhada horrenda, com seus olhos sem expressão, e seu corpo praticamente imóvel. A tal vizinha veio a falecer três meses depois. Foi apenas mais uma lenda criada em torno do quieto rapaz. Pouco mais de um ano fazia, quando certo dia dois casais de primos apareceram, com suas três lindas filhas. Duas de quatro anos, uma de dois e meio. Fazia quase dois anos que não via os tais primos. As meninas, então, apenas as reconhecia. Como tinham crescido! Pegou da mais nova no colo, sorriu profundamente pra ela e, com olhos marejados, disse:
– Oi, Princesa...
E depois de brincar por cerca de meia hora com a menina – mudo para todas as outras pessoas –, voltou a encarcerar-se em seu próprio universo, atrás daqueles olhos que voltaram a ser grades frias e intocáveis.

Ninguém jamais descobriu o que se passou no dia em que seu mundo desabou.


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

"Os Ombros Suportam o Mundo (Drummond)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação."



Assim é existir.

Abraço.

março 14, 2007 8:13 AM  
Blogger Malvinas disse...

Gosto dos seus textos.
Beijinho,
Malvina.

março 14, 2007 11:50 PM  

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