Confraternização

(Na geladeira)

terça-feira, outubro 30, 2007

Diário de bordo

Depois de um final de semana de negócios, deixávamos na madrugada – como quem sorrateiramente foge, inclusive de si mesmo, pra não ver o sol dar praia a mais um dia de vida – aquele paraíso de lugar quase perdido no inferno dos homens. Dez da noite eram quando a confraternização começou a ganhar corpo. De negócios já ninguém falava. Era uma molecada bacana: o mais novo com os seus quase vinte anos, o mais velho com seus trinta e tantos: trocando experiências e culturas numa música deliciosamente composta e intangivelmente executada por cinco ou seis línguas; numa dança de gracinhas e gracejos, piadas e muita alegria. Perto das onze atracaram à mesa uma jarra dos seus três, quatro litros. Disseram que era suco de maracujá. Foi pena eu ter bebido apenas um copo daquele suco, pois estava com minha cerveja quando ele chegou, e à meia-noite tivemos de seguir caminho. Adeus Bélgica, adeus Espanha, adeus Holanda, adeus Nova Zelândia. Adeus Alemanha também, que já então dormia – ou fazia coisa melhor. E adeus todos mais que eventualmente se atracavam enquanto tristemente nos fazíamos ao mar que nos levaria de volta à inútil realidade quotidiana, com sua eterna mesma estúpida língua – a dos homens a sobreviver sempre tentando alcançar com os pés as cabeças alheias. Certamente aquele suco fez, depois de nossa partida, com que as línguas se multiplicassem ainda um pouco. As línguas daquelas pessoas de bem, naquela situação como poucas propícia.

***

Segunda-feira, havia pouco era dia. O tranco causado pelos pneus a tocar a pista me abriu os olhos, mas ainda não toda a apatia que logo viria por regressar à cidade má – além de ter de ir trabalhar sem cama ou banho que me refizessem: da música e das danças do mundo; da fadiga de uma noite voada. Então já estamos taxiando, eu olho pela janela. Certamente há alguém nesse avião que pensa sua própria parcela na mesquinharia do mundo. Certamente.

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Vejo um homem pilotando o veículo que transporta as bagagens dos aviões pras esteiras, onde muitas vezes as pessoas – quiçá vizinhas de assento pelas quiçá muitas últimas horas – se acotovelam com o nobre – justo, porém – intento de recolher de volta pra si seus pertences materiais – que já então muitas vezes englobam memórias: penduricalhos engavetáveis de toda ordem.

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Penso eu: Pobre-diabo... deve ter começado às quatro, cinco da madrugada... e hoje é segunda, dia do cão... tem a semana inteira pela frente ainda... pelo menos trabalha ao ar livre, dos males o menor... e usa aquele fone de estúdio pra não perder a audição perto de tanto avião... deve até ser bacana andar com esse trenzinho minúsculo pra lá e pra cá perto dos aviões... mas no fundo, no fundo, deve ser uma merda mesmo... Na verdade eu pensava blábláblás. Aquele homem tinha a sorte que tinha, eu tinha a minha, e assim éramos, assim estávamos. Mas era segunda-feira, e isso doía bastante. E a mulher do piloto de bagagens estava, naquele momento, com o rapaz que ao microfone alerta aos passageiros as últimas chamadas de seus vôos e informações afins. Ela que é faxineira e lá mesmo no aeroporto conheceu seu marido. Ela que foi trocada de turno pra então conhecer o mocinho que a conquistou sem saber, só por ser o portador da última e grande voz que despede às incertezas do céu os reles seres que por lá se aventuram. Ela que não vai ter coragem de largar de vez o marido pelas incertezas a que os seres que se aventuram não devem se arriscar. Coisa humana. Amanhã ou depois volta a gostar do marido como antes... mas em não ocorrendo assim, assado pode ser o marido se propondo a também trocar de turno, e num ato de desespero ela tentar – e conseguir – ela mesma voltar ao turno original... e adeus mocinho... como adeus Bélgica, como adeus primeiro amor, como adeus pai, adeus mãe, adeus tudo.

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No vôo que chegou às dez e trinta e oito havia numa das janelas uma criança dos seus seis anos. Curiosa que era, viu o trenzinho e ao condutor lançou um ingênuo tchau. Mas ele, num momento de rara descontração, viu o exato improvável momento e, alheio ao que de sua vida continuava a ser feito ainda àquela hora, sorrindo fez de volta à criancinha: adeus.


Algoz

2 Comments:

Anonymous Anônimo disse...

Se possível for, fazer desse instante de livre adeus, uma realidade meio tranquílidade - achar golfinhos no iinferno! -, então que essa, como sempre é, seja a crônica da nossa vida.

outubro 31, 2007 3:40 PM  
Blogger Muitos testes disse...

e essa apatia que não passa...acho que nunca mais vai!

novembro 02, 2007 10:00 PM  

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